Aqui a noite é mais fria e solitária, o sono é raro e a falta de
apetite não me faz mover da cama. Visitas noturnas com suas vestes brancas,
fantasmas que não atravessam portas, que não voam e que não assustam. No
entanto, te ferem com o lindo sorriso nos lábios, fantasmas que conversam com o
seu delírio, ri, preocupam, desabavam, silenciam e vão embora sem atravessarem
a porta.
Aqui pessoas morrem de verdade, do nada, de dor cabeça, de um
resfriado, de uma tontura, morrem assim sem se despedir de ninguém. Eu fecho
meus olhos, então, eu me vejo com asas de volta as ruas da cidade, vejo pessoas
caminhando, ouço músicas do último álbum do Suede – Night Thoughts, vejo
estrelas brilhando no céu, sinto respingos d’água do chafariz da praça, vejo meus
amigos mas, eles não conseguem me ver. Eu voo lentamente sem pressa nenhuma, no
entanto, eu sinto uma dor aguda em minha asa esquerda, carros, ônibus, motos,
bicicletas e transeuntes faz a cidade movimentar. Luzes dos apartamentos, luzes
dos postes, das estrelas, da lua, eu vejo luzes em todos lugares. Novamente a
dor aguda me incomoda, bares, botecos, lanchonetes e pizzarias. Procuro por
você em todos os lugares possíveis, brigo, discuto, xingo, enfezo com minhas
incertezas. Mas, a dor aguda em minha asa esquerda faz tudo isso desaparecer, e
um fantasma que não voa diz:
_ Tivemos que trocar o acesso do soro para seu braço esquerdo.
Injeção para febre, para estomago, para dor, para o fígado... Aqui a
noite é mais fria e solitária.
Não sei bem o motivo mais me lembrei de toda discografia do Suede, e vi
o próprio Brett Anderson dançando no corredor do hospital, médicos,
enfermeiras, faxineiras, pacientes acompanhavam naquela dança frenética. Tentei
me levantar da cama empolgado com tudo aquilo acontecendo, comecei a cantar em
pleno pulmões até ouvir uma voz:
_ Ele está com febre alta outra vez.
Injeção para febre, para estomago, para dor, para o fígado...
A cama do meu lado amanheceu vazia, ele tinha apenas uma dor cabeça e
faleceu. Tenho febre, dores, calafrios, diarreia, indisposição, urina escura...
_Acho que vou morrer - Digo para
enfermeira, ela ri e responde:
_Você pensa que morrer é fácil?
Então eu penso “Ele só tinha dor
de cabeça”.
Durante o dia com a janela aberta vejo pombos no telhado, nuvens
brancas no céu, um avião distante e silencioso. Ouço barulho de carros, de
pardais e a cama vazia do meu lado, ele tinha apenas dor cabeça.
_ Oi.
_ Oi.
Era médica que acabara de chegar, sempre com o aquele sorriso que não
significava nada, sempre com aquele olhar complacente que também significava
nada. Você poderia estar resfriado, com dor peito, câncer ou amputado uma perna
que o sorriso e o olhar dela ainda assim seriam o mesmo.
_Tá ouvindo o quê? _ Indagou ela reparando o fone em meu ouvido.
_O novo álbum Suede – Respondi olhando para os pombos, observando que o
avião já não fazia parte da minha visão.
_The London Suede – Ela respondeu.
Olhei rapidamente para sua direção e outra vez, aquele sorriso que não
significava nada.
Ela continuou:
_Morei na Inglaterra nos anos noventa e o Britpop estava alta, Suede
era minha banda favorita. O Brett Anderson meu deus!!! – Ela olhou em minha
direção com aquele olhar que não significava nada e, complementou: _ O Brett
Anderson era tudo.
Não sei bem o motivo porém, comecei a falar seriamente do que ocorrei
na noite passada:
_Doutora o Brett Anderson esteve aqui ontem a noite, e, você sabe
disso, fez todo mundo dançar pelo corredor afora. Desculpe me, mas nunca vi uma
pessoa dançar também como a senhora.
Ela rapidamente chamou enfermeira sorrindo e me encarando, o que não
significava nada. Não havia mais pombos no telhado e nem nuvens brancas no céu.
Sua voz era pastosa e quase inaudível. Disse ela que minha febre estava alta,
altíssima ao ponto de delirar, de ver o que não se enxerga, de ouvir o que não
foi dito.
_Paracetamol na veia – Recomendou para enfermeira que acabara de entrar
no quarto.
Sinto dores em minhas pernas, dores
insuportáveis mesmo imóvel. Tenho um novo vizinho na cama ao lado, só trocaram
os lençóis. Acidente de moto, tão novo o rapaz, não mais que vinte anos. Ouvi
alguém dizer enquanto eu contorcia de dores que, ele estava com uma sonda para
alimentar. Suores frios transitavam pelo
meu corpo inteiro, ouvi alguém dizer que ele perdeu parte do pâncreas. Recoloquei
o fone no ouvido e, não ouvi ninguém dizer mais nada.
Adormeci um longo período e acordei,
só que meus olhos enxergavam apenas escuridão. Nenhuma luz emergia por mais que
forçasse minha visão e no meio dessa treva, ouvi alguém dizer que ele tinha
dores musculares e febre alta, que o batimento cardíaco estava normal, e a
pressão normal que, era uma pena perder um paciente assim, tão de repente.
Pensei comigo na escuridão meu Deus tão novo. Amaldiçoei em pensamentos aquela
cama que ficava do meu lado direito perto da janela. Duas mortes em menos de
vinte quatro horas. Foi quando eu ouvi alguém dizer que o mocinho perto da
janela estava reagindo bem aos medicamentos.
Como assim? O quarto com têm duas camas, o mocinho perto da janela
estava reagindo bem aos medicamentos. Eu não sou mocinho e a minha cama não fica
perto da janela.
Tentei chamar enfermeira com desesperado porém, minha voz não saia, a
escuridão permanecia, não sentia mais dores nas pernas, sentia apenas que meu
corpo flutuava e a música do Suede ainda continuava alta.
Que estranho, quando tinha dezoito anos de idade vislumbrava com a
morte, agora com quarenta três eu não posso estar morto: esposa, filhos, neta, amigos,
truco no boteco, fotografias e a tão sonhada volta do The Smiths...
The Furs & The Feathers é última música do novo álbum do Suede que
foi interrompida bruscamente.
_Desculpe acordar você assim. Mas, é só puxando o fone do seu ouvido
para acordar você.
Meus olhos saíram da escuridão e, eu nunca fiquei tão feliz de
testemunhar aquele sorriso que não significava nada. Era a doutora com cabelos
soltos que esvoaçam com o vento que entrava pelo um pequeno vão da janela
aberta. Ela disse:
_Tenho algumas novidades para
você.
_Diga - Respondi ainda aliviado de tudo ter sido um sonho.
_A primeira coisa é que seus exames deram tudo negativo. Dengue, Leptospirose,
Hepatite A. Enfim...
_E?
- Que não sabemos qual é o vírus ainda.
Criou-se um silencio que o pingo do soro ficou audível. Pensativa,
pausadamente e preocupada com cabelos ela continuou:
_Continuaremos com os remédios para controlar a febre e o soro para
hidratar e, tente alimentar direito. Sei que a refeição aqui não é uma das
melhores mas, com certeza tem tudo o que você precisa.
No entanto, somente quando ela abriu a porta para ir embora que ela
virou se e disse:
_Roberval esqueça o The Smiths jamais retornará.