E Você Se Sente Numa Cela Escura, Planejando A Sua Fuga, Cavando O Chão Com As Próprias Unhas
Coisas belas ditas pelo velho pároco, ao seu lado um jovem
aspirante a padre dotado de um olhar misterioso, coisas da missa matutina do
domingo na igreja que ficava no final das vielas, contrastava com os pecados
diários que eu cometia, nem a benção do padre ou Pai Nosso valia o meu dia, nem
mesmo o sol incrivelmente posicionado no meio do céu me tirava do meu esconderijo
do meio do matagal. Debaixo das arvores que possuíam espinhos pontiagudos, eu e
meu amigo Linari criavam ali personagens fortes e maldosos, verdadeiros super-heróis
que não sentiam amor e nem piedade. Somente quando eu ouvia os gritos de mamãe me
chamando o medo desvestia-me do torpor, voltar para casa e encontrar papai
bêbado resmungando palavras de ordem e palavrão era um grande saco. Papai não
sentia amor... Eu não sentia amor.
No começo de uma
noite fria e tenebrosa infestadas de rajadas de vento, debaixo da arvore de
espinhos pontiagudos, rodeados por dezenas de vaga-lumes, no céu de algumas
estrelas reluzentes que, apareciam e desapareciam entre as nuvens escuras de
uma tempestade anunciada. Lembro-me do grito de mamãe diferente como se fosse
trovão rasgando aquele começo de noite, não era palavras, era uivo de dor feito
um animal que sente frio e fome. Nem me despedi de Linari, senti aquele grito
penetrando meus ouvidos como se fosse um inseto mastigando vorazmente meus
tímpanos, corri desgraçadamente derrubando todo o matagal no peito e, ao
aproximar da velha casa sem reboco, eu vejo minha mãe sentada no chão, com as
mãos colada no rosto chorando compulsivamente, meu pai que não sentia amor
estava estirado no chão sem vida.
Foi quando um estranho que saiu não sei de onde, encostou
uma arma pro meu crânio e eu, nada pude fazer a não ser me ver balbuciando
febrilmente, implorando:
"Eu não estou pronto pra morrer"
Ainda persiste uma dúvida que talvez nunca vá esclarecer.
Ainda persiste uma dúvida que eu não me canso de remoer, os dias subsequentes
foram os mais cruéis de minha vida, a lamuria tem cor cinza e os dias impares
são os piores. A cerca de arame farpado
e a falsa liberdade diante dos meus olhos murchos pela oprimida vergonha da
veste e da fome.
No fim da ladeira, entre vielas tortuosas, há uma vila de
casinhas silenciosas. Numa manhã fria, eu saí de uma delas passos lentos e silenciosos,
sem dizer adeus e nem olhar para trás. Porém, nenhum dia se quer a vila saiu
dos meus pensamentos... Em meus sonhos eu caminho por todas as vielas, conheço
todos os cachorros que perambulam pelas as ruas, conheço todas as casas no
entanto, nos meus sonhos eu sou um desconhecido, os cachorros avançam na minha
direção e a minha mãe não me reconhece, sempre na janela com olhar triste e ao
mesmo tempo vago. Sempre acordo assustados todas as vezes e, imagino aquelas
vielas tortuosas como se eu nunca tivesse me ausentado dali.
Eu desconheço exemplo mais eficaz do que uma criação
inadequada é capaz e, os dias cinzas e chuvosos sempre me entristece bem mais
que deveria, fugas de lagrimas e a incontrolável tremedeira que nenhum agasalho
consegue me aquecer. Na rua as pessoas vem e vão, hoje eu tenho essa convicção,
eu poderia voltar agora mesmo no meio dessa chuva, no meio da noite entre os
relâmpagos e o barulho do trovão mas, a coragem que eu tive para partir eu não
tenho para voltar, mesmo que isso cause ulceras gigantes, angustias e tonturas,
insisto em ficar aqui. Meu orgulho está me matando... E você se sente numa cela
escura, planejando a sua fuga, cavando o chão com suas próprias unhas.
Mas, como dar amor se nunca recebeu, balbuciar palavras dóceis
com os lábios ressecados e lembrar do amor escondido num lugar onde ruído se
abafe... Eu não estou pronto para morrer.