domingo, 24 de dezembro de 2017

Eu, o cachorro e Sophia com PH


Vi uma moça balançando uma criança no colo e, isto me deixou um tanto triste devido uma lembrança de uma época que era muito feliz. Continuei o meu caminho deslizando minha mão direita pela grade de uma escola, uma senhora me pediu esmola na calçada eu fingi que não enxerguei, meu coração estava fora de ritmo, sudorese e visão embaçada. Sem rumo andando pelas ruas do centro, vertigens me fazia segurar em algum poste pra não cair, transeuntes me olhavam assustados, trocavam de calçada só pra não passar perto de mim. Confesso que eu estava vivendo mais tempo acordado nos bares que na minha própria casa. Sentia me inútil, com os cotovelos no balcão e minha cabeça apoiada nas mãos. A Dona do bar, uma mulher de meia idade, chinesa que tinha uma certa dificuldade pra falar em português, sempre que testemunhava aquela cena dizia:
_Vai pra casa, você é uma cara bom, não se parece com nenhum frequentador daqui. Vai descansar.
Sai do bar sem nenhuma vontade de chegar em casa, a cada passo que eu dava parecia que tudo tremia: a calçada, os carros, as casas, os postes, a senhora que ainda pedia esmola. Pensei em deitar na calçada mas, me veio em pensamentos os conselhos de minha mãe e, em passos lentos eu consegui chegar em casa. O cachorro estava faminto, abanava o rabo com alegria mesmo ficando horas sem comer. Abri o portão e desabei na varanda, o cachorro estava todo feliz pulando em cima de mim.


Mas, minutos depois eu me estressei com o cachorro, palavras de baixo escalão num grito raivoso, irrompendo toda sua alegria, ele apenas abanou o rabo vagarosamente sem aquela alegria de antes. Meu cachorro parece entender tudo o que ocorre em minha vida, parece que ele sabe que eu não estou bem, já não late como antes, e, eu já não o levo para passear comigo como nos primeiros dias que ele chegou aqui. Até o seu banho que deixava-o tão feliz tornou-se escasso. Ainda assim ele sempre me observa de longe, acompanha todos os meus movimentos e, quando eu saio deixando ele trancado, eu ouço seu choro lá da esquina, acho que ele tem medo que eu nunca mais volte.
Acendi a luz da sala, o meu colchão no chão é testemunho que eu não conseguia mais dormir no quarto, cinzas de cigarros, garrafas de vinho, livros e a televisão que eu esqueci ligada. Fui pra cozinha, um amontoado de louças na pia, a lixeira lotada de latinhas de cerveja, teias de aranha no canto do teto. Apoiei me na mesa pra não cair, vertigem de um mundo que aos poucos iam deixando de existir mas, que eu vivi com muita intensidade. Abri a geladeira não havia frutas, não havia leite e nem agua. Peguei uma latinha cerveja e sentei no chão de pisos tortos e, recortes irregulares. O cachorro uivava, uma espécie de choro querendo entrar insistentemente, batia as patas na porta da cozinha. Ouvi o vizinho proliferar um palavrão:
_Puta que pariu, agora essa praga de cachorro não que fica quieto.


Acordei com alguém me chamando, o cachorro continuava latindo, a latinha de cerveja caiu no piso da cozinha de piso irregulares, apoiei me na pia pra me levantar. Ainda estava tudo girando, alguém continuava a berrar meu nome do outro do portão. O cachorro latindo e tudo girando. Eu já tive dias melhores aqui nesta casa mas, também está tudo se apagando da minha memória, a cada dia que passa vai sumindo os sorrisos, as vozes e os gestos, vai ficando apenas as trincas nas paredes.
Eu consegui chegar até a porta me apoiando nas paredes, quando sai o cachorro pulava em minha direção e, com o punho fechado desferi um golpe direto, quase nocauteando, ele ainda me olhava com carinho encostado no pneu do carro na garagem.
_”Caraio” tá surdo, tô meia hora te chamando.
É Sophia com ph. Conheci Sophia alguns meses atrás, num barzinho do centro da cidade. Eu tinha acabado de sair de um relacionamento, Sophia de vários mas, os nossos olhos se encontraram e, depois da terceira cerveja ela já estava na minha mesa, para duas horas depois estar em cima da minha cama. Somente depois do sexo que, pra mim era uma espécie de alivio, conversamos. Descobri que ela realmente não tinha nada ver comigo porém, tinha um corpo espetacular, um belo sorriso e olhos castanhos profundos. Mas, e daí??? Eu estava sem ninguém, sem rumo nenhum, tentando entender coisas sem explicações e, Sophia falava o tempo todo, cada coisa absurda sem nexo nenhum mas, eu ria segurando seus seios enormes com minha mão direita e acariciando o seu piercing no umbigo com minha mão esquerda. Sophia era enigmática as vezes ela sumia diante dos meus olhos e, reaparecia sorrindo atrás de mim, outrora desaparecia por dias depois voltava como uma doida varrida. Sophia tornou-se nos meses seguintes o meu segundo inferno:
_Fala Sophia – Deixei o portão entreaberto.
_Tô precisando de dinheiro.
_Eu não tenho dinheiro agora.
Sophia tentava me seduzir a qualquer preço, ergueu o seu topzinho crochet e deixando os seios enorme de fora, fingi não enxergar e ser forte, nenhuma “noinha” em nome de Jesus iria me seduzir naquela noite. E, por um momento eu conseguia ser forte mas, um simples olhar de soslaio fazia a batida do meu coração acelerar, o cachorro pressentia o perigo mesmo ferido se levantou e começou a latir raivosamente para Sophia, mostrando os dentes afiados com um desejo enorme de morde-la. Sophia amedrontada abaixou o topzinho crochet e, eu enlouquecido com tudo aquilo chutei o cachorro.


Sophia gritou num desabafo e assustada:
_Esse cachorro é do mal. Você tem que dar um fim nesse cachorro Roberval, ele vai acabar mordendo alguém a qualquer hora.
Olhei pro cachorro com pensamentos perversos como abandona-lo em uma rua qualquer ou entrega-lo para adoção. Porém, por mais pirado que a vida tivesse me deixado nesses últimos meses, eu conseguia ver mais dignidade no olhar do meu cachorro que nos olhos castanhos profundos da Sophia aliás, eu conseguia ver mais dignidade no olhar do meu cachorro do que qualquer pessoa que eu tenho encontrado nesses últimos meses.
 Com a cabeça baixa pro meu cachorro eu convidei Sophia pra entrar e, nada mais que vinte minutos e cinquenta reais pra que Sophia fosse embora toda sorridente. Fechei o portão e olhei para cachorro e gritei:
_ Porque você tá me olhando assim pra mim porra? Porque você olha assim pra mim? Desgraçado, “mardito”, vai puta que pariu.



E o cachorro mesmo que sentado só abanava o rabo na minha direção. Senti ódio do meu cachorro, senti ódio de Sophia, senti ódio de todo mundo e um desejo enorme de desaparecer.
Levei o colchão para quarto e, fui dormir no sofá na sala com cheiro de Sophia impregnado no meu corpo, uma mistura de perfume da Avon “Luiza Brunet”, com cigarros baratos. Tinha pesadelos constantes durante a noite naqueles últimos meses, sentia que meu corpo levitava pela casa inteira, acordava assustado as vezes no banheiro, outrora na cozinha.
Como eu ia parar nesses lugares? Eu não tinha respostas?
 Naquela noite que Sophia foi embora eu acordei no banheiro, ainda com olhos embaçados fui para sala enxerguei na minha frente um casal velho me encarando sentados no sofá, com o corpo todo arrepiado, e, com duas mãos esfreguei meus olhos freneticamente, abri meus os olhos e o casal de velho não estava mais ali.
Era exatamente três horas da madrugada quando olhei no relógio de parede, acendi a luz da varanda, espiei pelo vitro, o cachorro estava pulando de alegria, brincando com algum ser invisível, nem me deu atenção, nem mesmo quando o chamei pelo nome. Voltei meu olhar para o sofá, e, novamente o casal de velhos estava em cima me encarando.
Com uma fúria desproporcional joguei o sofá no quintal, espalhei álcool em cima e ateei fogo que, alastrou-se rapidamente, somente nesse momento que o cachorro aproximou-se, e começou a latir ferozmente, vozes do vizinho proliferaram novos palavrões:
_Desgraça. Porra do inferno. Tá querendo colocar fogo na casa.
Por sorte ninguém denunciou, ficamos ali até fogo acabar eu, e o cachorro. Quando adentrei o sol já estava pra nascer, fui direto para o quarto, estava cansado que desmaiei na cama. Acordei atordoado com o sol do meio dia, a sala sem o sofá me causou uma certa estranheza, fiquei ali um tempo com olhar paralisando um, talvez dois minutos até o cachorro latir do lado de fora. Abri a porta e levei um susto tremendo, não havia nenhum vestígios da fogueira, nem cinzas do sofá, o quintal estava organizado e limpo, a vizinha do outro lado em cima de uma cadeira podava suas samambaias métricas, olhou afetuosamente em minha direção e sorriu, respondi com um balançar de cabeça sem entender nada.




Os dias passaram e o casal de velho nunca mais apareceu e, Sophia nunca mais voltou, as vezes tenho convicção que ela nunca existiu, que tudo foi um surto de alucinação, que nada aconteceu, só os dias que se passaram e a primavera já havia terminado.





domingo, 3 de dezembro de 2017

RAKTA - Oculto Pelos Seres 7"


Li numa critica super recomendado e, na vontade desesperada de ouvir coisa nova baixei, transferi para o celular, coloquei na mesa de cabeceira e deitei. A noite era silenciosa, de poucas de estrelas, a lua parecia um sorriso tímido, mantive a janela aberta e apertei o play do celular... A musica "Intro" é bem louca, feito um vendaval ferindo os emaranhados condutores de energia, o meu abajur flerta entre a escuridão e a luz artificial, os meus olhos quase semicerrados. A musica é curta mas, é suficiente pra deixar o meu "eu", fugir de mim...




...Não é a curva do Rio, não são as cores dos pássaros, não é sobre ela deitar-se no meu colo num dia melancólico, não é sobre beijos que as línguas não se tocam, não é fugindo dos olhares alheios, não é fingindo novos sentimentos e esquecendo dos velhos. A ladeira é mais íngreme do que parece quando subimos e não pronunciamos nenhuma palavra, estamos sem fôlegos e com os lábios ressecados, o meu coração está disparado e, você sorri na minha direção sem ligar para os pingos da chuva.
Trago comigo malas carregadas de decepções, de sonhos frustrados e desilusões. Trago um enorme vazio no olhar, a insônia, mudanças repentinas de comportamento. Eu ouço vozes, sorrisos e choro dentro da minha cabeça e, ela nem se importa quando a ameaça da chuva vai embora, não compreende o significado do meu silencio e, quando os pombos nos rodeiam na Praça Central, ela atira pipocas na direção deles, toda feliz e me questiona:
_Tá sério por quê?
Então, eu respondo:
_Já fazem meses que não tem agua no chafariz.
_Nossa, só por isso você está sério?
_Também por isso.


O vendaval continua feito uma trilha sonora, há faíscas de fogos quando os galhos de uma arvore gigantesca entra atrito com emaranhado de fios elétricos. Abruptamente tudo fica escuro, a musica cessa sem nenhum aviso prévio... Num relance eu acordo assustado, o ateísmo vai embora enquanto me benzo, estou suado e febril porém, meus olhos fecham novamente.



Levantamos causando a revoada dos pombos, caminhamos sobre as flores da Sibipiruna feito um grande tapete amarelo, o vento forte bagunçou os cabelos dela. Seguimos em silencio até a Rodoviária, ela me abraçou forte antes de adentrar no ônibus, retirei entre seus cabelos duas pequenas flores amarelas e, guardei no bolso da minha camisa. E, depois que ônibus partiu eu fiquei vagando por ali, como uma ideia fixa de embarcar para alguma cidade demarcada nos painéis eletrônicos porém, acabei indo para um balcão sujo e cheio de moscas, pastel de queijo e caldo de cana. No entanto o pior estava por vir, vozes me chamando pelo meu nome, na minha frente só uma chinesa dona do estabelecimento mexendo no seu celular. Mas, as vozes continuavam:
_Roberval, Roberval, Roberval, ... Aqui, aqui, ...

Sim, eram as moscas que estavam falando comigo, Fiquei incrédulo, belisquei meu braço esquerdo, inventei uma tosse repentina, um ônibus rumo a São Paulo Capital deu partida, um faxineiro varria o chão parou e olhou na minha direção. E, elas continuavam a chamar pelo meu nome, algumas em voos rasantes gritavam meu nome ao passarem perto do meu ouvido. Eu tentava atingi-las com tapas violentos que sempre terminavam no meu próprio rosto.

Foi nesse ínterim que surgiu em meus ouvidos a música "Rodeados pela Beleza", um barulho quase infernal, triturando todo aquele mal estar. todo aquele mundo surreal de moscas falantes, tudo se rebelando diante dos meus olhos. Tapas e mais tapas no meu próprio rosto, cada vez mais forte, desfigurando em meio a alucinações e desespero. Para ou bem ou para o mal aquela musica ficaria ressoando em minha cabeça durante muito tempo ainda.




_Moço, você está passando mal? Indagou a chinesa toda preocupada.
_Não – Respondi confuso, deixei o dinheiro no balcão e sai apressado todo assustado daquele local, dando tapas e mais tapas em meu próprio rosto, atravessei a Avenida, o semáforo estava no sinal vermelho, uma freada brusca do condutor do automóvel evitou o acidente porém, não dezenas de palavrões proliferadas pela sua boca torta envolvida por barba volumosa grisalha.
Encostei no poste sobre uma luz fraca de mercúrio, avistei um homem caminhando na calçada com as mãos dadas com seu filhinho, uma lágrima se formou rapidamente no olho meu esquerdo, o que reforça minha tese que o meu olho esquerdo é mais sentimental que meu olho direito. Não interceptei a lágrima, deixei rolar no meu rosto fazendo um percurso lento nas imperfeiçoes, marcas de acnes da adolescência, cicatrizes, rugas e a barba de dois dias. Alguns segundos depois veio a lágrima do meu olho direito, mais rápida obedecendo a trilha do meu sorriso torto. Vieram mais, dezenas delas feito peças de uma quebra cabeça que a luz de mercúrio fraca e precária, quase que não revelou na noite fria que tão rápido se formou, o rosto do meu filho feito no meio dos respingos de lagrimas no chão.



Então, do nada apareceu um cachorro vira-lata que do poste fez o seu mictório e, levou como uma correnteza amarelada e mal cheirosa todas as peças do meu quebra-cabeça. Eu sei que ninguém vai repor os meus dias ausente, ninguém ocupará o meu lugar, ninguém fará o meu papel, é um vazio que eu conheço bem, são dores quase insuportáveis na junção dos ossos.
Decidi retomar o caminho de volta pra casa porém, alguns passos depois eu ouço novamente o meu nome, olho para trás, era cachorro vira-lata que vinha na minha direção. Comecei a correr e, só depois de dois quarteirões resolvi olhar para trás, eu me assustei, agora era dezenas deles todos gritando pelo meu nome, aumentei a velocidade, o coração parecia que sair pela boca, avistei na frente um restaurante aberto, entrei quase sem folego e, encostei no balcão de costas com os cotovelos apoiado naquela pedra falsa e fria que, era constituído aquele balcão em formato em S. Com olhar assustado na direção da rua, pressupondo que dezenas de cachorros aparecessem ali, gritando pelo meu nome. Não, eles não apareceram.
Devagar os meus músculos foram relaxando, meus olhos deixaram de olhar fixamente para rua então, comecei a observar o ambiente que eu tinha entrado, um lugar cheio de mesas espalhadas pelos quatro cantos e, em cima de cada mesa uma lâmpada fosforescente centralizada, uma espécie de abajur ou coisa similar que, atraia muitos insetos. Meu ouvido também começou a detectar tudo e, um barulho que vinha atrás de mim, do outro lado balcão começou a me perturbar, foi quando realmente eu virei para um balcão. Quase morri de susto, uma grande libélula batendo suas grandes asas me encarava com seus olhos enormes, tinha o corpo de humano, pernas, braços, dedos... Tudo coberto por uma grossa escama preta, asas oriundas das costas e a cabeça vermelha gigantesca de uma libélula, fiquei paralisado por um longo tempo esperando a engrenagem do meu cérebro encaixarem os dentes e, somente quando a engrenagem começou a rodar eu testemunhei o que ao chegar não tinha observado, várias libélulas com o mesmo formato, o que mudava eram as cores das cabeças e das asas, todas sentadas com seus familiares ou amigos, alimentando-se dos insetos atraídos pelas luzes fosforescentes centralizadas da mesa.  

Confesso que foi nesse momento que ouvi a introdução "Atrativos da Mentira", algo me dizia que eu seria o próximo banquete, me lembro da voz desesperada Paula Rebellato apesar de não conseguir decifrar o que me dizia, era tudo perturbador, os olhos enxadrezados das libélulas tinha minha direção e a musica contribuía com o meu medo, eu senti um liquido quente descer por entre minhas pernas e a musica passou a ser o meu maior enfrentamento. Devolvi o meu olhar castanho aos olhares enxadrezados, amedrontados porém, fixos. Por alguns minutos antes que musica terminasse, eu me senti encorajado de verdade.




Tentei sair de fininha mais todas as libélulas levantaram voos das mesas vieram atrás de mim gritando meu nome, como se eu fosse um grande inseto para satisfazer a fome de todos ali, ouvia suas mandíbulas mexerem como se fosse uma grande serra elétrica aproximando do meu rosto, alcancei a saída do estabelecimento e logo percebi centenas cachorros na minha espera, comecei a correr novamente dos cachorros e das libélulas que levantaram voos em minha direção.
Por sorte havia um ônibus preste a sair alguns metros a minha frente, num salto espetacular fui direto para o terceiro degrau, suores transitavam pelo meu rosto, recuperei o fôlego antes que fechasse a porta porém, ao olhar para motorista percebi sua enorme cabeça de cavalo, com o paletó preto e gravata vermelha, crinas enormes, dentes pontiagudos e olhos verdes.

Desesperado saltei espetacularmente de volta a calçada, a trilha sonora agora era "Memoria do Futuro" aturdido com a música e com a perseguição fui em direção da avenida principal, um impacto forte de um automóvel me jogou longe. Moscas, cachorros, libélulas e o motorista com cara de cavalo foi tudo que eu pude testemunhar ao meu redor antes de fechar os meus olhos, ainda assim ouvia o zunido da música do RAKTA.



Zunido insistente e perturbador, a ventania agora num ritmo tribal, apocalipse sendo desvendado, a cavalaria do Exercito do anjo Miguel rumo a batalha contra Dragão. Eu estaria no céu ou no inferno? Uma luz tremula, ziguezagueava diante dos meus olhos, concentrei firmemente naquela luz imaginando ser uma entidade do bem ou do mal porém, alguns segundos depois eu percebi que era do meu celular vibrando, o despertador. Era a hora de trabalhar, comecei a rir sozinho, foi tudo sonho, um sonho muito louco.
Levantei e assustei, tinha libélula sem vida próximo ao abajur. Fui tomar um banho, tinha suado muito durante a noite, apressei em me vestir, já estava me atrasando porém, o meu sonho ainda estava em minha cabeça, tranquei o portão rapidamente e, caminhei para pegar o ônibus da empresa. Devo confessar que algo me incomodava no bolso de minha camisa, fui conferir, era duas pequenas flores amarelas da Subipiruna e, reparei também ao longe próximo onde eu pego o ônibus um aglomerado de cachorros.

quarta-feira, 11 de outubro de 2017

Arctic Monkeys – AM



Cabisbaixo e com os dois cotovelos sobre as grades, mãos na cabeça e os pensamentos livres. Os meus pensamentos sempre foram livres mesmo que o meu corpo estivesse ali encarcerado naquela prisão. Recordo-me o dia que cheguei algemado por dois policiais truculentos. Eu com um riso irônico no rosto, embora assustado por dentro. Deram me alguns socos antes mesmo de tirarem as minhas algemas, jogaram me numa cela com outros oito presos, recolhido e amedrontado eu fiquei ali no canto.

Eu sabia desde criança que essa minha contrariedade com todos e com tudo um dia eu ia me ferrar assim, personalidade moldada por uma infância solitária, uma adolescência rebelde de poucos amigos, brigas na saída da escola apoderada de uma violência incontrolável, admirados pelos professores pelas notas altíssimas e, odiado pelos mesmos pela indisciplina.

Na prisão:
_Matou, roubou ou estuprou? Que você fez pra estar aqui com a gente? Questionado pelos outros presos.
_Desacato e agressão.
_Não importa vai ser a mulherzinha aqui hoje.  
Disse o cara que parecia ser o líder, forte e cheios de tatuagens.
Quando ele tocou em meus ombros aquela personalidade moldada na infância, aquela violência incontrolável na adolescência estava pulsando na minha veia, não só agredi como quase tirei a vida dele. Apanhei dos agentes penitenciários mas, ganhei respeito na prisão.

Alguns dias depois tive acesso a alguns livros, devorei numa leitura diária e sedenta. Não participava das partidas de futebol e raras vezes ia ao banho de sol. Ler, ler, ler e ler. Ocupava o meu tempo sempre lendo. Comecei a inventar estórias de crimes que não havia cometido e de fugas que não tinha feito com tal veracidade que, somente a leitura diária me tornou capaz de fazer. Ganhei mais respeito fortalecendo o bandido que nunca fui:

_Esse foda, roubou vários bancos.
_Já matou a sangue frio.

Isto te dá um status grande no mundo penitenciário mas, no íntimo eu só tinha desacato e agredido num momento de fúria um juiz. Artigo 331,peguei pena máxima dois anos de prisão mas,já estava chegando no quarto ano encarcerado. Não era assassino, não era ladrão, apenas um rebelde enlouquecido com a vida.

O que mais sinto falta aqui na prisão são as minhas músicas prediletas, os meus álbuns favoritos, minha coleção de vinil... Lembro do último álbum que comprei “Arctic Monkeys – AM”, estava muito ansioso pois, a música de trabalho havia me surpreendido. Talvez já tenha lançado outro álbum, eu não sei. Minha vida musical foi interrompida depois que eu vim para cá. O que ouço aqui é o apito do agente penitenciário, alguém cantando alguma coisa do Racionais Mcs e o barulho do vento.





Durante a madrugada a coruja pia dando as minhas lagrimas quentes uma trilha sonora.  
Tantas vezes na madrugada entre os roncos dos outros presidiários, o piar da coruja e no pisca-piscas dos vagalumes no imenso corredor, eu pedi pra Deus que levasse embora minha alma pois, o meu corpo já estava sem vida há muito tempo. Desde da tenra idade foram poucas vezes que eu me senti verdadeiramente feliz, sempre isolado feito um cacto no meio do deserto, cheios de espinhos pra me defender dos camelos sedentos por água. Ainda sinto os dentes afiados dos camelos penetrando em minha pele, meus ossos triturados pela fome insaciável de outro ser, me sentindo um idiota no meio daquela área árida e inóspita.




Dia de visita é um dia de empolgação aqui, famílias, cigarros, encontros amorosos em lugares privados. Nesses dias eu prefiro ficar deitado debaixo do cobertor, a saudade do meu filho, único filho me faz tremer compulsivamente, lembro dos seus olhos em minha direção, do seu sorriso que dizem ser parecido com o meu. Queria tanto que esses olhos, que esse sorriso aparecessem pra mim antes de cometer qualquer loucura mas, esses olhos e sorriso só aparecem depois, de uma explosão de sentimentos embaralhados que, toma posse do meu corpo e do meu raciocínio.



Minha mãe costumava comparecer nas visitas nos primeiros meses, sempre com um sorriso cordial que tentava esconder sua tristeza e decepção com o seu filho caçula, disfarçava também o constrangimento da rigorosa revista para adentrar na prisão. Ela sempre fora contra o meu vício pelo cigarro no entanto, no meio dos produtos de higiene e guloseimas, sempre havia uma carteira de cigarros.



Passados seis meses da minha prisão ela veio falecer talvez, de desgosto. Um ataque cardíaco fulminante foi o que me disseram. Não pude comparecer em seu velório e, minhas visitas e o contanto com minha família encerram aquele dia.
Recuso todos indultos, recuso ver um mundo que aos poucos vai se apagando da minha memória, a avenida, a praça central, o pôr do sol, os mendigos na calçada. Eu apenas ouço como é o mundo lá fora quando chega algum prisioneiro novo disposto a conversar, a falar dos novos carros, do caos da saúde pública, da violência e do desemprego. No mês passado apareceu um aqui que conhecia o meu filho.

_Porra, eu conheço seu filho, tá sempre usando uma camiseta da banda Arctic Monkeys.
_Camiseta do Arctic Monkeys?
_Ele é fanático por essa banda, tem cabelo comprido é muito extrovertido. Reparando bem, o seu jeito de sorrir é muito parecido com o dele.
_Desculpa minha pergunta mas, ele faz parte da criminalidade?
_Nossa!!!! Longe disso. Ele faz parte de uma de uma ONG que, distribui sopas ou marmitex para moradores de rua.

Meu filho...


Dias atrás eu fiquei sabendo que logo estarei livre, mais tardado alguns meses terei minha liberdade decretada. No entanto, isso não me deixa alegre por saber que a verdadeira grade que me aprisionam estão dentro de mim...



terça-feira, 5 de setembro de 2017

Elvis Presley - A Caixa Vermelha de Elvis.



Porque nossa conversa começava depois que todos estavam dormindo, não tínhamos sonhos, só insônias e, eram as melhores insônias de todos os tempos. Eu me lembro que ia trabalhar no dia seguinte cansado, bebia café como se fosse água, dormia em pé porém feliz. 

Felicidade transparece até mesmo com olheiras gigantescas, não produzia como devia e o chefe que era um grande amigo percebia o meu sono, o meu cansaço mas, acima de tudo testemunhava minha felicidade e, dizia sempre “Vai lavar o rosto no banheiro eu termino isso pra você”.

Um dia eu estava tão bêbado que em plena madrugada, de uma insônia solitária pois, havíamos desentendidos um dia antes, eu levantei da cama e pichei o nome dela no muro da minha própria casa, voltei para cama, a insônia continuou a me perturbar, iriam descobrir que fui eu mesmo que escrevi. Eu, levantei novamente e, fui para o quartinho das ferramentas, misturei algumas tintas e peguei a brocha e, em plena madrugada fria de inverno comecei a pintar o muro inteiro, o guarda noturno em sua bicicleta me cumprimentou assustado depois, soletrou o nome dela muro:

_E-V-E-L-Y-N

Certa vez eu presenciei ela com o marido de mãos dadas conversando e sorrindo, ela parecia bem feliz, comecei a segui-los numa distância bastante segura, ele entrou no Banco e ela ficou do lado de fora. Resolvi ligar para celular dela e, no momento que ela olhou para o celular percebi mesmo que de longe seu nervosismo.

_Alô? Sua voz estava tensa.
_Oi Evelyn – Tentei disfarçar minha decepção, continuei:_ Onde você está?
_Estou trabalhando.
_Trabalhando? Hoje não é seu dia de folga?
_É, mas me chamaram para trabalhar – Avistei o seu marido saindo do banco:_ Tchau vou ter que desligar agora.

Nem deu tempo de responder o tchau apenas, testemunhei o seu marido tentando pegar o celular da mão dela, ela recuou, discutiram e voltaram a caminhar novamente sem as mãos dadas, sem conversas e sem sorrisos.
Nesse dia fui trabalhar nervoso, não conseguia concentrar no que estava fazendo, errei a medida de um material que era exportação urgente e, jamais tinha testemunhado meu chefe tão nervoso comigo:

_Porra cara, assim você me fode. Cacete. O que está acontecendo com você? Assim não dá...
Sai da fábrica totalmente pirado, pensamentos inconclusivos, respiração ofegante, velocidade máxima.

“O que está acontecendo com você?”

Cheguei em casa com uma vontade louca de fazer sexo e, quando eu toquei em minha esposa as palavras rotineiras:

_Sai pra lá. Eu tô dormindo, tenho que levantar amanhã cedo – Ela sempre dizia isso mas, aquele dia eu estava totalmente fora de si, fizemos sexo de forma tão selvagem que, com certeza não foi amor. Ela se levantou da cama ainda nua, enquanto eu acendia o cigarro. Indagou-me:
_Você está bem, mor?
_Estou. Por que não estaria?
_Pois, você errou meu nome duas vezes antes de ejacular.

Minha esposa me beijou toda feliz que, nem me questionou sobre o nome e, eu que fiquei curioso pra saber que nome eu tinha sussurrado, tudo indicava que era Evelyn, pois Evelyn estava em tudo e em todos lugares, com sorrisos e olhares ela foi penetrando em minha vida, até lugares que eu achava seguros, por exemplo o meu casamento:
De repente eu comecei achar que o meu casamento já era tão seguro assim pois, Evelyn fazia coisas diferentes, me escutava e interessava também sobre meus gostos e, quando eu tocava em Evelyn ela não tinha dor de cabeça, não tinha de acordar cedo. Na verdade, não foi o jeito de fazer sexo de Evelyn que afundou meu casamento. O que afundou meu casamento foi jeito que Evelyn me dava atenção. Mas, ainda sim, o que me tirava do sério era só de pensar o jeito que ela fazia sexo comigo, ela poderia fazer do mesmo jeito com o marido dela e, fazer sexo com o marido dela pra mim já era uma traição e, algumas vezes eu teclava na madrugada com ela:

_Você fez sexo com seu marido?
_Fiz, afinal ele ainda é meu marido.
_Mas, você fez da mesma maneira que você faz comigo?
_Da mesma maneira mas, com outros sentimentos.
_Não acredito, é traição Evelyn.
_Não é traição. Traição é que nós fazemos.
_Mas, da mesma maneira é traição da traição.
_Desencana, você faz sexo também com sua esposa, não faz?
_Mas, é diferente ela é minha esposa.
_E ele é meu marido.

Alguns dias depois encontrei o marido dela num bar no centro da cidade. Ele não me conhecia, talvez nem tinha ouvido falar o meu nome, ele estava sozinho no canto do balcão tomando cerveja, fiquei do lado oposto, encarando-o, estava bem vestido, barba feita, parecia um gerente de banco. O que Evelyn viu em mim eu não sei, barbudo, uma camiseta surrada do Ramones, calça jeans com mais de três anos de uso, carro popular de 2008 e com dinheiro contado para três cervejas.



 Meu Deus, acho que observei demais, ele acenou pra mim, disfarcei olhando para trás, fazendo de conta que não era pra mim, não adiantou ele insistiu me chamando com gestos. E, se ele soubesse de alguma coisa? Fiz aula de judô durante um mês quando tinha oito de idade talvez, agora com quarenta e dois anos, eu tivesse que colocar em pratica todo ensinamento do mestre Gerson, falecido Gerson. Lembrei das aulas de catecismo também, das orações que a catequista Delma ensinava.
A cada passo que eu dava na direção dele do outro lado balcão, embaralhava Ave Maria com Pai Nosso porém, sempre acabava num amém.
Nem bem aproximei-se dele, já foi esticando os braços e sorrindo em minha direção.

_Prazer meu nome é Carlos, eu vi você ali sozinho e, eu estou afim de conversar com alguém, logo vi a camiseta do Ramones. Sei lá, achei que poderia desenvolver um bom papo.
Evelyn nunca tinha falado o gosto musical de Carlos aliás, o gosto musical de Evelyn era horrível no meu conceito, o mais perto do Rock que ela ouvia era o Kid Abelha, uma noite depois que fizemos sexo apressado dentro do carro ela começou a cantar uma música da Ivete Sangalo:

_Pegou me deu um laço, Dançou bem no compasso, De prazer levantou poeira. Poeira Poeira Poeira Levantou poeira!

_Que isso Evelyn?
_Tô feliz ora bolas!!! Quando você está feliz você não canta?
_Canto mas, não Ivete Sangalo.
_Que música você canta então?
Então eu comecei:
_I don’t have to sell my soul
He’s already in me
I don’t need to sell my soul
He’s already in me

I wanna be adored
I wanna be adored

_Que música é essa?
­_The Stones Roses “I wanna Be adored”.
_Nunca ouvi falar mais grava pra mim, eu com certeza vou adorar.


Foi assim que aos poucos fui mudando o gosto musical de Evelyn, até chegar uma noite com mesma pressa, no mesmo carro, fizemos sexo. Evelyn colocou a calcinha vagarosamente e começou a cantar:

_I Wanna Be adored. I wanna Be adored.

Conversei com Carlos o marido de Evelyn por mais de três horas, lógico que ele nem suspeitava que eu saia com sua esposa e, nenhum momento ele falou da sua vida pessoal, rimos muito falando de nossa adolescência, descobri que ele era fanático pelo Elvis Presley que, até arriscou no auge da bebedeira “Suspicious Mind”, fazendo do copo que ele tomava cerveja um microfone improvisado, e pelo grau da bebedeira eu cheguei imaginar que estava perto do Elvis de verdade até ouvir o barulho de descarga, um senhorzinho calvo acabava de sair do banheiro.


Teve um hora que eu fiquei preocupado com o numero cervejas que tínhamos bebido, eu tinha dinheiro apenas para três porém, Carlos me abraçava e dizia “Meu, eu precisava de um cara assim pra conversar, eu tenho pouca fé no entanto, tenho certeza que foi Deus que te enviou aqui”. Lógico que, por mais bebida que eu tivesse ingerido, eu estava bem mais lucido do que Carlos, tinha plena consciência que Deus jamais enviaria o amante da sua esposa em bar cheio de cervejas.
No caminho de volta para a casa eu estava sentindo uma coisa estranha, o pôr do sol, o ipê amarelo florido, os pedintes nas esquinas, tudo tinha um pouco de melancolia para os meus olhos. As pessoas estavam tristes e cansadas dependuradas nos ônibus, o guarda de transito gesticulava com rapidez porém, seus olhos estavam vazios, nas esquinas jovens bonitos todos tragando cigarros de maconha, um cachorro magricelo e sarnento revirava o lixo procurando alimento.


Na minha mente Carlos, o legal, o sorridente, conhecedor de livros, de filmes, de política, muito mais inteligente do que eu. Comecei a andar vagarosamente na cidade, reparar detalhes que sempre passaram sem jamais chamar minha atenção, pardais nos telhados das casas, o badalar dos sinos na igreja, esculturas que jamais tinha visto no alto do Museu.
Eu me senti tão mal que vomitei numa lixeira, pensei até que ia morrer, o vomito saia até pelo nariz. Comecei enxergar naquele momento uma Evelyn diferente de todas Evelyn (s) existentes, até a lua que já fazia presente era diferente de todas as luas que eu e Evelyn passamos juntos e abraçados observando. Ela não estava tão brilhante, pensei algumas vezes que ela ia se apagar, não apagou-se no entanto, sumiu-se por alguns demorados minutos, uma nuvem carregada ofuscou seu brilho.

De repente comecei a desconfiar de todas as mulheres que eu encontrava na Rua, imaginando que estivesse saindo de algum motel, que tivesse acabado de copular com outra pessoa. Mulheres apressadas, outras nem tanto, algumas arrumavam os cabelos, outras reforçavam a camada frugal do batom, sérias, felizes, bonitas e feias. Uma loira que vinha na minha direção toda fogosa me chamou de “tarado” e, eu com todo pensamentos girando em minha cabeça respondi chamando-a de piranha.
Cheguei em casa e Ana Paula minha esposa estava toda arrumada, perfumada, batom vermelho, salto alto.

_Ainda bem que você chegou, esqueceu que eu falei que ia no Shopping trocar o vestindo que ganhei de aniversário.
Aproximou-se:
 _Nossa que cheiro horrível “mor” pelo jeito você bebeu mais do que devia.

Todas aquelas imagens das mulheres arrumando os cabelos, reforçando a camada frugal do batom, das sérias, das felizes, das bonitas e das feias vieram novamente em meus pensamentos.

_Você não vai no Shopping? Eu sei aonde você vai sua vadia – Falei com tanto ódio.

Ana Paula se assustou com tamanha braveza das minhas palavras.

_Que isso amor? “Cê” tá bem?
_É vadia mesmo, é igual Evelyn e todas que estão na rua nesse momento.
_”Mor” quem é Evelyn? Foi de Evelyn que você me chamou aquele dia.
_ O que importa agora quem é Evelyn? São todas vadias.


Nunca mais vi Ana Paula, nunca mais vi Evelyn, nunca mais vi mais ninguém. Fiquei sozinho em casa durante meses ouvindo todos os dias uma caixa com cinco álbuns (vinil) que tinha como preciosidade do Elvis Presley.

domingo, 20 de agosto de 2017

Raul Seixas - Krig Ha Bandolo


No bar um senhorzinho com os cabelos grisalhos, o rosto sulcado, as unhas sujas e carcomidas, as roupas com respingos de tintas, um pintor de construção de civil eu deduzi. Sorria descontraidamente, dois copos de cachaça goela abaixo depois, dezenas de caretas. Pede o violão pro dono do bar, só então reparei que sua unha do dedo anelar estava roxa, certamente uma martelada errada que custará daqui uns dias a perda da unha. Nos primeiros acordes ele logo percebeu que o violão precisava de afinação e, quando ele afinava vislumbrei o local aonde eu me encontrava, só pessoas que deram erradas na vida. Na extensão do balcão homens cabisbaixos, banguelas, com tiques pavorosos como mexer as sobrancelhas sem parar ou movimentar o ombro pra cima repetidamente, tinha uma moça que ficava girando um molho de chaves sem parar, um pedinte querendo salgado e uma mulher com shorts curto com cara de periquito que, piscava seus olhos pra todos os homens que estavam ali, ela piscou pra mim também. É, na verdade eu fazia parte das pessoas naquela extensão do balcão, pessoas que deram errado na vida.  Alcoólatras, assassinos, prostitutas, desempregados, desamados, bipolares, enfim... O senhor de cabelo grisalho começou a cantar:



Eu prefiro ser

Essa metamorfose ambulante
Eu prefiro ser
Essa metamorfose ambulante
Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo
Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo


Aconteceu uma coisa estranha naquele momento, houve um silencio na plateia de pessoas que deram errado na vida, testemunhei lágrimas que escorriam dos olhos dos desdentados, das prostitutas e dos assassinos, lágrimas silenciosas e preguiçosas, alguns tentavam disfarçar olhando para o teto, outros que pediam pra garçonete mais uma dose de alguma bebida mais forte. Eu fiquei perdido ali em pensamentos, absorto, infeliz, incapaz de me mover, até pedi pra Deus que convertesse toda aquela minha tristeza, toda aquela mágoa que tomava posse do meu corpo em lágrima porém, Deus que foi capaz de transformar a água em vinho não conseguiu transformar minha mágoa em lágrimas.

Alguns dias depois, eu caminhava pelo centro da cidade de Pindamonhangaba, confesso que já havia ingerido bebida alcoólica suficiente que, a cada passo que eu dava tudo ao redor tremia: os carros, transeuntes, arvores, monumentos históricos e até cachorro que fuçava o lixo. No meu pensamento Franciele, metade da minha idade e metade do meu conhecimento. Não lia, não interessava por cinema, não torcia para o Corinthians, nunca ouviu falar do Nirvana porém, tinha um corpo acima da média.



Tomei coragem e convidei-a para ir barzinho que tocava bandas covers de rock, achei que ela poderia gostar do Guns n Roses. Quem não gosta de Guns N Roses? Pra ser sincero eu não gosto porém, a maioria das pessoas que eu conheço gostam. Franciele gostou da cerveja e da pizza. Enfim, não gostou da banda, reclamou várias vezes do barulho da guitarra e da bateria, achou o vocalista desafinado e gordo. Eu que não gosto do Guns no entanto, queria ficar até o fim da apresentação. Ela não, queria ir embora de todo jeito e, quando levantou-se, deixando à mostra aquele piercing no umbigo me convenceu de ir embora.

_Vou levar você num rolêzinho, só pra você ver o que é diversão.

Bem, depois de tanta insistência de Franciele aceitei o convite para um rolezinho, o lugar era conhecido como Praça da Bíblia, muita gente, a praça lotada. Talvez, eu demorei um pouco para perceber que estava no meio de crianças de quatorze e dezesseis anos de idade a grande maioria, crianças chapadas de bebidas alcoólicas, chapadas de maconha, meninas com roupas curtíssimas dançando ou sei lá, insinuando. Carros, muitos carros com sons potentes, a música funk com letras de apelos sexuais, Franciele rebolava na minha frente com metade da bunda pra fora.



_Cê tá gostando amor?

No momento que Franciele me fez está pergunta veio em minha cabeça o meu escritor favorito, o depravado Henry Miller que, sua trilogia Sexus, Plexus e Nexus, tornava-se tão pequena e inocente diante que meus olhos testemunhavam ali. A bunda Franciele era linda, parecia um coração de tão perfeita que era. Porém, naquele dia eu fiquei tão perplexo com todo aquele movimento que, a bunda de Franciele nada mais era que uma bunda dançante descontrolada no meio daquele alvoroço de bundas descontroladas.

Longe daquele tumulto eu avistei viaturas da polícia estacionando próximo ao local, com cassetetes nas mãos, começaram a correr em nossa direção. Franciele me puxou pelos braços:

_Corra a polícia – Gritou ela.

Comecei a correr sem saber o porquê? A corrida me fez sentir uma adrenalina incrível, de certa forma me fez voltar a minha adolescência quando eu corria do terrível Manuel, o dono de um sitio, onde eu meus amigos íamos furtar laranjas, o terrível Manuel saia com uma espingarda de chumbinho feito louco atrás da gente mas, tínhamos quatorze, quinze anos de idade com um folego e energia incrível.
Muito bem lembrado, eu já não tinha quatorze anos de idade e o folego já não era o mesmo, não conseguia acompanhar Franciele naquela corrida louca, foi quando a pancada de cassetete na minha nuca me fez cair, Franciele ria com seus amigos daquela aventura que pra mim tinha acabado.

Ouvi o policial falando todo eufórico para o seu superior:

_Pegamos o traficante, Senhor.

Enquanto veio outro policial e com os seu coturno me deu chute na minha barriga que, perdi quase por completo a respiração, levantaram me com brutalidade e me questionando:

_Cadê as drogas, hein?

_Senhor, eu sou trabalhador – Disse isto com muita dificuldade.

Foi explosão de risos dos policias.

_Sargento o indivíduo aqui falou que é trabalhador – E continuaram rindo, foi então que o sargento aproximou-se, eu cabisbaixo com uma dor enorme na barriga, não tinha coragem de olhar para Sargento, tinha medo de levar uma bofetada no rosto. Percebi que ele ficou parado na minha frente e então, resolvi lentamente olhar em sua direção.

_Nossa! Era mesmo quem estava pensando. Que você está fazendo aqui, rapaz?

O sargento da polícia era um velho amigo, servimos o serviço militar junto e continuou:

_Aqui não é lugar pra você, nem combina contigo. Vai dizer que está ouvindo funk agora?

Nem esperou qualquer explicação minha, olhou para os seus comandados e disse:

_Ele está liberado, não é o traficante.

Quando os policiais foram embora me deixando ali, as dores na barriga aumentaram consideravelmente, minha sorte que a Praça da Bíblia é próximo do Pronto Socorro, e, com muita dificuldade consegui chegar lá. A dor era tanta que comecei a gemer sentando, a demora para passar na triagem aumentava o meu desespero, uma mulher do meu lado tirou o celular da bolsa e começou a me filmar. Questionei:

_Moça, você está filmando moça, sério isso?

_Vou enviar para o Facebook, na página Pinda Cidadã. A culpa é do prefeito – e conferindo a gravação complementou: Nossa vou receber muitas curtidas. Valeu moço!

Dizendo isto foi embora.

Passei pela triagem e fui atendido pelo médico, já era quase vinte três horas. O médico parecia mais preocupado com o seu celular:

_Então, o que vc está sentindo? – indagou o médico olhando de soslaio para minha direção mas, preocupado mesmo com o celular.

_Estou com uma dor terrível na barriga – e o médico me interrompeu, largando o celular e pegando a caneta para fazer a receita de medicamentos.

_Já sei, é virose, você é o quarto paciente que vem aqui com os mesmos sintomas.

E foi logo escrevendo a receita.

_Doutor, eu levei um chute na barriga de um policial.

Não sei ao certo o que médico pensou mas, ficou amedrontado, talvez pensando que eu fosse um bandido de alta periculosidade, abriu a gaveta apressadamente e me deu alguns remédios de amostras grátis para dor e infecção, só não tirou raio x pois, o aparelho do Pronto Socorro estava quebrado.

Noutro dia acordei cedo com um pouco dor na barriga ainda apesar, do remédio que havia tomado antes de dormir para aliviar a dor. Queria tirar foto, tinha necessidade de sair para ruas clicando tudo que meus olhos testemunhassem pela frente, fotografia pra mim tinha transformado como válvula de escape, jamais pensei em ganhar dinheiro com fotografia, eu só queria que minha fotografia retratasse o que eu estava sentindo, que se fosse dor, rancor ou mágoa que transmitisse da forma mais bonita possível.

Foi nesse dia que eu reencontrei o senhorzinho de cabelos grisalhos que tocava violão no barzinho e, se não fosse a música do Raul Seixas acho que passaria direto sem perceber que ele estava ali sentando,encostado num monumento da praça, acho que é uma águia que tem na Praça Monsenhor Marcondes. Bem, a música era “Rockixe”:



Você é forte, faz o que deseja e quer

Mas se assusta com o que eu faço, isso eu já posso ver
E foi com isso justamente que eu vi
Maravilhoso, eu aprendi que eu sou mais forte que você.


Sentei do seu lado como se a música do Raul Seixas me atraísse como imã, ele estava com radio pequeno e antigo com um toca fita que naquele que momentos depois começou tocar “Cachorro Urubu”, num coro desafinado comecei a cantar com ele:





Todo jornal que eu leio

Me diz que a gente já era
Que já não é mais primavera
Oh baby, oh baby, a gente ainda nem começou


Perguntei:

_Você se lembra de mim?

O senhorzinho me encarou por alguns segundos.
_Lógico que me lembro, você era o cara que estava no bar alguns dias atrás, estava perdido, com olhos tristes, pensativo. Você é o cara das fotos, certo?

E antes que eu pudesse responder ele continuou:

_Amo suas fotos apesar, de ver algo gritante nas entrelinhas.



Eu disse:

_Você gosta do Raul, hein?

_Kri-ha, Bandolo é o álbum da minha vida.




Ficamos em silencio quando tocava Ouro de Tolo, reparei que tinha um taxista que olhava a todo momento para nossa direção, os pombos também já faziam presentes na praça, azaleias floridas com visitas de alguns beija-flores. O taxista aproximou e disse com olhar triste para o senhorzinho de cabelo grisalho:

_Você perdeu sua bicicleta.

_Como assim?

_Aquele homem que pegou sua bike, não volta mais.

_Como você sabe?

_Olha, acabaram de postar a foto dele na página Pinda Cidadã “ladrão de bicicleta”. Daí, eu pensei “Porra esse cara estava quase agora aqui”.

O senhorzinho levantou desorientado:
_Filha da Puta – Caminhou até o ponto de taxi, olhou demoradamente para direita, coçou a cabeça com as duas mãos, voltou-se vagarosamente e, sentou-se ao meu lado, aumentou o volume do som e disse olhando pra mim:- Não acredito e, seu falar pra você, você também não irá acreditar.

Quando a fita terminou, ficou um tempo rebobinando a fita do seu radio, quando terminou apertou o play e a voz de Raulzito novamente se fez presente:

_Minha Bicicleta nem é tão nova assim, o valor é mais sentimental foi presente de aniversário de minha filha – Tentou espantar os pombos que se aproximavam mexendo os braços num vai e vem.

_Desgraçado – Continuou:- Foram três dias de lábias pra conseguir minha bicicleta, você acredita nisso?

_Como assim? Questionei.

_Há dois dias atrás estava eu aqui logo de amanhã, ouvindo o meu Raul Seixas como sempre faço quase todos os dias e, esse indivíduo aproximou-se bem apessoado, com linguajar diferenciado, reparou minhas calças sujas de tintas e não titubeou foi logo perguntando

“Você trabalha em construção civil?”. Eu respondi que era pintor então, ele me falou que trabalhava em sociedade com um amigo, que era mestre obra e, iria pegar uma obra grande e que precisaria de pintor. No dia seguinte ele voltou aqui de manhã falando que tudo estava certo, falou o quanto eu ganharia por dia que, me pegava ali mesmo na Praça, colocaria a bicicleta em cima da caminhonete do seu sócio e, iriamos até local, que eu não precisaria levar almoço e café, a firma forneceria tudo. Acreditei piamente no que ele dizia.

Riu olhando para direção do último beija-flor que restava na bela azaleia florida e continuou:

_Eu compareci aqui hoje, bem antes do horário combinado, precisando de serviço e com o aluguel atrasado. Ele apareceu sorridente vestido como um grande empresário. Cumprimentou com um abraço demorado, perfume forte, pensei, deve ser caro, bem diferente do desodorante que eu uso e, quando uso. Olhou para o relógio e, foi logo dizendo: “Estamos com um pequeno probleminha aqui, meu celular ficou no Centro comercial e, eu estou sem contato com o meu sócio. No entanto, o rapaz do centro comercial que arruma celular abriu uma exceção para mim, disse que poderia pegar o celular agora de manhã. Você não emprestaria sua bicicleta só pra mim pegar o celular ali, é rapidinho.”  
Porra como eu ia desconfiar de um cara bem apessoado iria roubar uma bicicleta seminova. Meu Deus o que está acontecendo com mundo?



Sai dali triste com toda aquela historia foi quando Franciele me ligou:
_E ai, o que rolou com a policia?

Olhei para os pombos, para azaleias floridas da praça e desliguei o celular sem ao menos dizer alô.


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