segunda-feira, 10 de abril de 2017

Boogarins - Manual


Ela sentava sempre do meu lado mas preferia olhar o céu de outono naqueles fins de tarde, eu via o reflexo de fogo em seu olhar, seus cabelos castanhos claros também reluziam a mesma luz porém, não havia nenhum sorriso, nenhuma palavra e o silencio prolongava-se. Não havia mais amor, o que havia era o amanhecer, o entardecer e o anoitecer. Não havia mais entusiasmo o que havia era o café, o almoço e a janta. O sexo tornou-se cada vez mais rápido, mais violento e mais gritado.

Quando o sol se escondia atrás da montanha ela se levantava como sempre fazia todos os dias. Aliás, a única coisa que nos aproximava nos últimos meses era o pôr do sol do outono, nos dias nublados ficávamos sentados em frente da televisão. Não tínhamos diálogos e nem filhos, focamos em nossa carreira, ela se deu melhor, ganhava o dobro do que eu.

Devo confessar antes de mais nada que quem traiu fui eu, e, foram várias vezes que cheguei em pensar em separação. No entanto, eu nunca tive coragem em assumir a outra relação. Ela também era casada e curtia Joy Division, o sexo não era rápido, nem violento e ela, apenas sussurrava em meus ouvidos. Não gostava do pôr do sol, detestava outono e as folhas que caiam das arvores.
Quem me apresentou a ela?  Foi a minha própria esposa:

_Está é minha amiga Malú que, trabalha comigo, aquela que te falei que gosta do Joy Division.
Até ai tudo bem, conheço algumas mulheres com idades de 25 anos que gosta do Joy Division, The Cure, The Smiths... No entanto o que chamou a minha atenção era sua camiseta do Boogarins – Manual. Álbum lançado em 2015.

Minha esposa continuou falando porém, eu não estava mais ali, viajando na camiseta que era a reprodução da capa do Álbum, com rabiscos coloridas tentando esconder uma tristeza gigantescas nos traços escuros, com lápis forçado de uma obra que começa com “Truques”.

Ela sorri, seus mamilos pontudos acompanham o ritmo fazendo dos rabiscos de sua camiseta ganharem movimentos, então eu vejo um arco íris numa terra inóspita.
 Acha que eu estou viajando??? Então ouça:




Nos encontramos outra vez no acaso no bar do Queiroz, na grande avenida iluminada, apinhada de jovens correndo com pneus de caminhão nos ombros ou troncos pesadíssimos de arvores, garotas terríveis com musculaturas do Sylvester Stallone, rindo como se o riso fossem rasgar seus rostos banhados de suores.

_Oi – Ela me cumprimentou, estava com a mesma camiseta da semana passada, numa rápida verificada no local descobri que tínhamos amigos em comum, a música que rolava no bar do Queiroz era "Tempo" do Boogarins, tinha certeza absoluta que tinha sido ela a culpada disso. Talvez respondi o seu oi com um balançar de cabeça. Peguei uma cerveja e fui para mesa que ficava na calçada. A letra da música ganhou um significado gigantesco com aquelas musculosas correndo com seus troncos de arvores no ombro:



Vou me libertar
Do tempo dos homens
Só vou te encontrar
Enquanto eles dormem

Não vou me importar
Com o tanto que podem
Pois quero afrouxar
A coleira dos homens

Esqueça das horas
Pois nada demora

Ame e deixe os outros
Pois bando de bicho solto
É bem melhor


_Oi, Eu falei com você lá dentro e, você não me respondeu. Eu sou a Malú, amiga de sua esposa, a gente se viu na semana passada... Não se lembra?
_Oi, tudo bem? Respondi timidamente.

Malu falava mais que a boca, sabia de tudo um pouco, e, conhecia todo mundo.
Até mesmo as meninas musculosas com pneus de caminhão nas costas.

_Cuidado com esse pneu. Linda!!!
_Malu passa amanha em casa, tenho ótimas novidades para você. Disse a menina com o corpo igual do Sylvester Stallone.

Ficamos horas conversando sobre filmes, músicas e livros que, eu esqueci do horário... Ela falou que seu marido era violento,que ele trabalhava em trecho, que ficava quinze ou até vinte dias ausente de casa, andava sempre armado e nervoso. Inúmeras vezes ela presenciou brigas dele no transito, sempre apontando o seu revolver na direção de qualquer um. Achava-se acima da lei e, quando voltava para casa queria fazer sexo com extrema violência, só que ele sofria de ejaculação precoce, um fraco sexualmente, coitado. E isto deixava-o muito frustrado e violento. Ela disse também que fora agredida por ele várias vezes por sua frustração sexual com socos e pontapés. Que ele acordava no meio da noite banhado de suor e assustado, que pegava seu revolver Taurus cinco tiros, duas polegadas, calibre 38 e disparava contra a lua.

No bar do Queiros agora tocava “Mario Andrade / Selvagem” e, ela cantarolou com a voz triste e ao mesmo quase vazia:



Há dias que eu sinto meu corpo frio e oco
Deixo passar
Eu me esqueço o tempo todo e pouco a
Pouco eu sinto outro em meu lugar


Voltei para casa, era noite de outono com seu vento frio arrastando consigo as folhas das arvores secas e sem vidas, as luzes de mercúrio dos postes conseguiam dar um tom mais melancólico aquela cena, não havia transeuntes e nem carros.  O que havia era dezenas de gatos em cima dos muros, nos telhados e nas lixeiras. Gatos Persas, Siameses, Angorás e outros sem raças definidas. Apoiei na vitrine de uma loja. Estava embriagado, enxergava tudo desfocado e ouvia uma música que repetia dentro de minha cabeça.


Percorrer
Distorcer um sonho
Vou viver por viver
Sem dono...

Foi justamente nesse dia que os meus juramentos foram embora, em forma de um vomito interminável, pensei que ia morrer na calçada cercado por angorás, siameses e persas. Eu vi a lua e, tive vontade de atirar em sua direção também. Eu vi algumas estrelas, luzes de mercúrio e mais gatos siameses. Ouvi o apito do guarda noturno, o som do vento nos fios elétricos, das folhas secas das arvores arrastando-se no asfalto.
Consegui por alguns instantes equilibrar-me num portão de grade, perturbando o sono de um Pastor alemão furioso. Em sequencias de luzes acesas, do quarto, da sala e da varanda. Um grito forte irrompe o latido do pastor alemão, oriundo de uma porta semiaberta:

_Vai embora seu bêbado, Filho da Puta.

Fui, escorando o muro de concreto, tateando palmo a palmo, vertigens alucinógenas, cores e rostos a cada piscar de olhos, sorrisos proveniente da escuridão, a loucura é colorida feito as pinceladas do vaso de girassóis de Vicent ou do álbum Manual do Boogarins.

Alguns meses depois...


...Vou perder você agora porque depois eu não suportaria, tomarei um café frio e amargo sozinho enquanto você dorme, ficarei a noite inteira acordado e com a janela da sala aberta, alimentarei na madrugada as mariposas com leite integral e, quando o sol aparecer você ainda estará dormindo, exausta do trabalho. Cortarei todas margaridas do jardim que eu plantei antes de partir pois, eu sei que as lembranças elas nos fazem emagrecer e adoecer. As lembranças são febris, tenha paciência que está próximo do final do outono e o inverno já não é tão rigoroso como antes. 

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