sábado, 29 de julho de 2017

Black Sabbath - Paranoid


Era três da manhã quando o telefone tocou, estiquei minha mão trêmula em direção ao criado mudo.

_Alô?

Do outro da linha um chiado ruidoso, cachorro latindo, vozes e risadas ao fundo. 

_Alô? Insisti e ninguém respondeu.

 Desliguei o telefone e ouvi um barulho vindo da cozinha.

Meu Deus, eu estou enlouquecendo. Durante a madrugada eu ouvi gargalhadas e vozes pela casa inteira, televisão que ligava desligava sozinha, cachorro que latia pelo quintal sendo que eu não tinha mais cachorro, luzes  que acendiam e apagavam sem ninguém tocar no interruptor. O barulho de gotas da torneira do banheiro, passos pelo telhado e um frio insuportável que me fazia bater os dentes debaixo do cobertor.

Tentei uma oração, um Pai Nosso mas, o rancor que apossava do meu coração me fez interromper pelo meio. As luzes continuavam acendendo e apagando.  O latido do cachorro aproximou-se da janela, o frio aumentou, levantei enrolado num cobertor, abri janela nenhum cachorro,  ouvi o pio de uma coruja no pico do poste de luz da rua, pensei mau agouro. Olhei para o relógio da parede 3 horas e 10 minutos da madrugada e, então começou a tocar no aparelho de som no canto do quarto Black Sabbath o álbum Paranoid, assim do nada. Detalhe o aparelho estava desligado da tomada. 


A partir desse dia que o aparelho ligou sozinho, comecei a ter uma visita estranha no quarto, as vezes a janela abria sozinha e o vulto ficava ali e outras vezes o vulto aparecia do meu lado em cima da cama. Nesses momentos o frio ficava quase insuportável, um cheiro de enxofre invadia o quarto,as batidas frenéticas e descompassadas do meu coração era tão forte que só faltava o coração sair pela boca, a primeira vez que isto aconteceu pensei, torci e desejei que um desmaio ocorresse e não ocorreu. 



O vulto usava um capuz preto, suas pupilas eram vermelhas e giravam sem parar, cobrir a cabeça sob o cobertor ou fingir um desmaio não adiantava nada, o vulto permanecia ali com seus olhos vermelhos giratórios. 
Um dia criei coragem e perguntei: 

_Quem é você? 
Estava tremulo. E sem muita delonga veio a resposta.
_Eu sou a morte, e vim te buscar.
Respondi assustado quase que num grito:
_Eu não quero morrer!!!
A morte desvencilhou seus olhos dos meus e o cheiro de enxofre ficou mais forte, rajada de um vento gélido derrubou portas retratos da penteadeira e, sua voz robótica ecoou em meus ouvidos:
_Você já está morto.
_Como assim? Indaguei. No entanto num passo mágica a morte desapareceu, o volume da música ficou mais alto fazendo tremer a imagem de Nossa Senhora Aparecida na mesa de cabeceira.


Porém, suas visitas tornaram-se constantes sempre as 3 horas da madrugada, sempre o mesmo odor de enxofre, sempre o mesmo frio insuportável e sempre o mesmo álbum Paranoid do Black Sabbath.

Uma noite a morte sentou-se na minha cama com um livro gigantesco, o frio fazia meus dentes entrarem conflitos num batimento frenético e audível. Então, a morte começou a folhear aquele livro cheios de fotografias, com imagens perfeitas que, cheguei piamente acreditar que a morte possuía uma Canom e, saia durante o dia disfarçada de vida para conseguir aquelas fotos. E, cada foto que ela me mostrava, tinha sempre um questionamento.

_Você se lembra dessa pessoa aqui?
_Lógico que me lembro.
_Ele te visitou nos primeiros dias que você estava sozinho, mostrou a maior preocupação com você, Certo?
_Sim.
_Veja foto, vejo o sorriso dele. Tá vendo, ele parece feliz. Você acha ainda que ele pensa em você?
Continuou:
_Essa foto então. Repare, ela está no barzinho com amigos tomando vinho, parece bem descontraída. Bem diferente de você, né?

Uma lágrima rolou pelo meu rosto, interceptei com a minha mão esquerda. No entanto, vieram outras e outras e, tudo ficou descontrolado com soluços e o nariz escorrendo.

_O problema sempre foi você, sem você na vida deles era somente felicidade... Eles dão risadas quando falam seu nome, fazem piada sobre sua tristeza, imitam seus gestos e sua voz com deboche... Qual foi última vez que alguém ligou pra você?

Antes que eu respondesse a morte antecipou:

_Eu sei, foi ontem a tarde, alguém te indicando um profissional, um psiquiatra – A morte foi até cozinha e voltou com uma de cerveja na mão:
_ Você está deprimido, está morto, fazendo e refazendo o mesmo caminho observando o que ninguém vê, testemunhando as folhas secas que desgrudam dos galhos das arvores num rodopio triste e melancólico até chegar ao chão. Eu sei quanto tem chorado e o quanto está confuso. Tenho acompanhado sua vida desde criança... Você se lembra quando caiu da bicicleta batendo a cabeça no asfalto?
_Sim, eu me lembro. Tinha oito anos de idade – argumentei.
A morte então me respondeu:
_Eu sei que você tinha oito anos de idade. Eu estava lá, do outro lado da rua. Teve uma outra vez que você se afogou no Rio e o seu irmão mais velho te salvou.
Eu questionei:
_Você estava lá também?
_Eu era redemoinho que tentava te levar para profundeza do Rio.


Prolongou-se alguns minutos de silencio até a morte fazer uma previsão.

_Haverá três dias de uma chuva incessante, dia e noite – Falando isto a morte desapareceu.

A morte estava certa, foram três dias de muita chuva, trovoes e relâmpagos. Três dias que centenas sapos invadiram o meu quintal durante a noite e ficaram em frente à janela do meu quarto coaxando repetidamente. Sapos de todas espécies: sapo cururu, sapo pipa, sapo malaio, sapo martelo, etc. Da janela eu atirava bolas de papeis, chinelos e latas de cervejas vazias tentando afastá-los no entanto, eles continuavam coaxando sem parar, numa somatório de sons diferentes e perturbadores.

 Justamente as três horas da madrugada apareceu uma luz tão brilhante no quintal que quase me cegou, os sapos pararam com o coaxar e, abriram um caminho para que aquela luz forte passasse por entre eles, fui obrigado atirar-me sobre minha cama para dar passagem para aquela luz que entrou pela janela, o aparelho de som não ligou no habitual álbum do Black Sabbath “Paranoid”, aliás não tocou musica nenhuma  e a luz brilhante rondou pela casa inteira, cozinha, sala banheiro e, depois voltou para quarto, ficou um tempo na minha frente como estivesse me observando, sumiu de repente, como um soprar de vela, apagou-se. E assim foi durante as três noites da chuva incessante, com centenas de sapos pelo quintal e com o itinerário que luz fazia pela casa inteira.

Na primeira noite após o término da chuva a morte voltou, fazendo a casa inteira tremer, dos seus olhos saiam faíscas de fogo, o cheiro do enxofre ainda mais forte do que nunca, centenas de cachorros rottweilers apareceram no quintal latindo sincronizado, a imagem de Nossa Senhora Aparecida caiu da mesa de cabeira transformando em cacos espalhando pelo piso frio do quarto, o aparelho do som estava no último volume à música era Paranoid, a voz de Ozzy Osborne misturava-se com os latidos dos cachorros:


Finished with my woman 'cause she couldn't help me with my mind
Terminei com minha mulher porque ela não poderia me ajudar com minha mente
people think I'm insane because I am frowning all the time
As pessoas pensam que eu sou louco porque fico mal humorado todo o tempo
Think I'll lose my mind if I don't find something to pacify
Durante o dia eu penso em várias coisas mas nada parece me satisfazer
Think I'll lose my mind if I don't find something to pacify…
Acho que vou enlouquecer se não achar algo para acalmar...

A morte aproximou lentamente da minha cama, seus olhos agora jorravam labaredas de um fogo quase que vermelho, os latidos dos cachorros cessaram e sua voz robótica ecoou por toda casa:

_Então, procurou um psiquiatra – A morte riu até quase perder o folego, e, continuou: _Ajuda química para uma vida superficial. Não fique alegre com duas horas de sono, a maioria das pessoas suicidas acabam com suas vidas abusando na primeira crise bipolar da própria química que “cura”.

Falando isso a morte atirou em minha direção todo medicamento que eu tinha adquirido no dia anterior, com prescrição do psiquiatra, a morte continuou rindo:

_Você já leu a bula do remédio?
E antes de responder a morte me disse:
_É pequena diante da bula dos seus problemas. Você sabe que não vale pena remediar de uma situação que está fora do seu controle.
Dizendo isso a morte desapareceu e o som continuou:


And so as you hear these words telling you now of my state
Então você que está ouvindo essas palavras que falam sobre o meu estado
I tell you to enjoy life I wish I could but it's too late
Eu digo para você curtir a vida, eu queria, eu poderia, mas é muito tarde.






terça-feira, 18 de julho de 2017

Sonic Youth - Daydream Nation





Sonic Youth 
Daydream Nation




Não sei ao certo o porque resolvi sair armado aquela noite, minha visão estava embaçada e a chuva era interminável, o vento era frio mas, não obrigava me agasalhar, a iluminação das ruas era péssima. Vultos nas encruzilhadas, as vezes eu passava a mão direita no cós da calça apenas pra certificar se a arma estava lá com o tambor carregado.

Lembro claramente a primeira vez que apertei um gatilho, foi no Exército com um fuzil. Dois tiros certeiros e o terceiro que até hoje eu não sei aonde foi parar.

 Não, não me apaixonei por armas. No entanto, comprei um revolver que estava no cós da minha calça incomodando o meu andar.

 Minha visão estava embaçada e haviam vultos me perseguido... Porra, assustei me com um cachorro vira-lata e, demorei uma eternidade pra puxar o gatilho, da próxima vez eu não poderia vacilar... Minha visão estava embaçada.

Minha mãe sempre dizia que eu tinha mania de perseguição por isso o motivo de tantos remédios ingeridos diariamente.
(Mamãe morreu alguns anos atrás)

Desarmei o guarda-chuva ao chegar ao ponto de ônibus, um senhor com cabelos grisalhos encolhido no banco tragava seu cigarro calmamente, olhando os pontos inexatos dos pingos da chuva. Ele não me viu no entanto, pressentiu minha presença. Passei vagarosamente minha mão direita no cós da minha calça, senti o trinta e oito volumoso e carregado.

Nunca precisei usar este revolver em situação real de perigo, poucas foram as vezes que me afugentei para o meio da mata e dei tiros à revelia, era um espécie de escape pro meu estresse.

Devo confessar que antes de sair de casa eu tinha ouvido o álbum do Sonic Youth – Daydream Nation repetidas vezes que o barulho emanado deste álbum ainda estava revirando minha cabeça.



 Eu estava atento a tudo, bem mais que deveria e, uma simples tosse do senhor de cabelos grisalhos me fez sacar o revolver agora sem vacilo e, apontar em sua direção, o senhor continuou tossindo enquanto os meus dedos deslizavam intranquilos e trêmulos. Mil pensamentos distorcidos fizeram redemoinhos de minha sensatez, foi quando o Senhor de cabelos grisalhos olhou para minha direção, seus olhos emergiam chamas de fogo e de sua boca desdentada uma nevoa acinzentada assessorava sua tosse seca. Apertei o gatilho repetidas vezes e corri com toda pressa do mundo contra chuva para um ponto seguro.

Nos meus ouvidos ainda ressoavam a música: 
Cross The Breeze



O que era aquilo? Meu Deus o que era aquilo?
O cano ainda quente do revolver e duas munições ainda no tambor. Eu não sabia onde estava, perdido na cidade que eu nasci, uma viatura da polícia me fez esconder atrás de uma lixeira. 



Eu deveria ter tomado todos os meus remédios e, não deveria ouvir Sonic Youth no último volume.


sexta-feira, 7 de julho de 2017

Adorable – Against Perfection



Vera Lúcia Sua grande filha da puta.
Como assim? Foi embora?
Fizemos amor na noite passada na cozinha. Você apoiou-se no fogão enquanto era enrabada, outrora com as pernas arreganhadas. Entre mordidas e chupadas em meu pescoço a palavra “eu te amo”.
O que houve Lucy? Lucy eu estou tão confuso, seu sorriso encantador, sua bunda maravilhosa e minha cara de idiota.



...E levou minha televisão 42 polegadas, notebook, maquina de lavar e o sofá que ainda estou pagando. No entanto eu não perdoo o CD da banda que te apresentei. Eu quero o CD do “Adorable – Against Perfection” de volta. Eu vou procurar você no inferno, eu sou capaz de matar você sua vadia. Eu quero meu CD de volta.


 Eu teria saído melhor se tivesse ouvido os meus amigos:
_”Não fique todo empolgado só porque ela usa a camisa do The Cure”.
_”Meta o ferro e caia fora”.
_”Cê tá louco cara. Levar ela pra morar na sua casa. A mina maior noiada”.


E contrariando todos eu levei você pra morar comigo. Fazíamos amor todo dia. Foder, foder, foder pra entender que agora estou fodido.
E pior de tudo isso que eu acredito que você vai voltar e vamos sentar novamente em frente da lua, beber vinho tinto, ouvir “Homeboy” no ultimo volume.


Agora eu sei realmente o significado de “indieota”.
Vera Lúcia sua grande filha da puta. Eu quero meu CD de volta.

quarta-feira, 5 de julho de 2017

noel gallagher's - high flying birds



Na seca há dois meses sai da minha prisão domiciliar com um único objetivo, fazer sexo. Necessidade estampada no rosto... Engraçado, já faz um tempo que não saio assim como um caçador, nem sei como abordar, galantear e arrastar a vitima. Porém, prossigo com mesma técnica talvez em desuso: duas doses de conhaque goela abaixo, argumentações pra qualquer assunto principalmente os assuntos que eu detesto, incluindo chapinha,progressivas com luzes e descoloração.

Halls extra-forte  pra camuflar o hálito do conhaque, mais argumentações sobre TPM, infecção urinaria e aumento dos seios... Enfim, eu estava preparado.

Noel Gallagher`s – High Flying Birds… É trilha Sonora que eu escolhi pra me acompanhar nessa “caçada”. O carro recém saído do Lava rápido era um brilho só, pretinho nos pneus e os faróis acessos. Um halls extra-forte atrás de outro e olhar investigador em cada barzinho, esquina e ponto de ônibus. Há necessidade de fazer sexo é pior que necessidade da fome... Que sente fome faz sexo, quem não faz sexo não come...

Eu sempre achei que o Liam Gallagher`s fosse a alma e o coração do Oasis. O Liam mesmo com as mãos pra trás tinha uma presença de palco fodida...


Em “Everybody is on the run” música que abre o Álbum “High Flying Birds” já começo a duvidar do Liam ainda mais, que o Álbum da sua nova banda Beady Eye foi fracasso.

Paro o carro. Decido descer em um barzinho apinhado de mulheres, apinhado de vitimas é assim que pensa o verdadeiro caçador.

Peço a primeira cerveja observando tudo o teto com enormes teias de aranhas, parede sem reboco, pessoas sem camisas e fumaça de cigarros. Timidamente um riso emerge dos meus lábios com a certeza que aqui a vitima não será tão difícil. Com a fome que estou eu como todas.



No canto perto de um freezer enferrujado e cheio de cervejas uma máquina de jukebox. Retiro da carteira duas moedas de um real o que equivale a duas musicas. Certamente não encontraria ali o álbum do Noel Gallagher`s, Beady Eye e nem mesmo do Oasis. Com sorte achei um The Best of Scorpions e um The Best of Queen. Às vezes penso que banda como Queen, Scorpions, The Police, Simple Mind... Não é preciso ter uma discografia inteira, um The Best of, é o suficiente.
Scorpions – Certamente tem a musica que mais ouvi em meus trinta oito anos de vida, não por opção:


Essa musica é que mais gosto do Queen. Na verdade é meio chavão, mas, Freddie Mercury cantava muito...

Quando estava na musica do Scorpions "Still loving you" uma moça aparentemente com a metade de minha idade aproximou-se:

_Nossa eu amo essa musica.
_Sério?
_É o meu pai ouvia essa musica o dia inteiro lá casa.
“O meu pai ouvia dia inteiro”
Sei lá achei isso meu broxante, no entanto como bom caçador eu mantive a mira.
_Seu pai tem bom gosto musical.

Nem precisei convidar ela pra sentar, ela sentou, nem precisei pedir um copo ela trouxe consigo. Depois quinta cerveja uma alegria contagiante entre nós dois, parecia que gente se conhecia há muito tempo.
Ela me contou como ficava nervosa durante a TPM, falou do cuidado que têm com seus cabelos e que, pensava em aumentar seus seios. 
Aproveitando brecha rapidamente eu disse que tinha poderes sobrenaturais enfim, tinha uma visão biônica e os seus seios eram lindos.
Pedi a saideira com promessa que a deixaria no portão da sua casa.
Ao adentrar no carro a primeira coisa que fiz antes mesmo de ligar o carro, foi apertar o play do radio.

Aka... Broken Arrows




Juro que assoviava alegremente quando ela me interrompeu:

_Val, coloca numa música mais agitada assim eu vou acabar dormindo. Minha vontade era parar o carro abrir porta e expulsa-lá, porém, aquela noite eu tinha duas vontades e segunda mexia com meus músculos. Entende?

Deixei radio ao controle de seus dedos que, também apossaram do volume e para meu desespero ela começou a cantar e a dançar no banco do carona:

Entrei no motel bem meia boca, nunca fiz um sexo tão selvagem que de alguma maneira parecia uma libertação. Exausto entrei no carro apertei novamente o play:

“Stop the Clocks”



_Val de novo essa música chata.

Pisei bruscamente no freio.

_Desce do carro.
_O quê?
_Desse do carro agora.

Ela desceu e bateu a porta com toda força.  Fez um sinal com dedo em minha direção. Fiquei imóvel até terminar a introdução de “A simple game of genius” depois, acelerei... Tai um bom álbum Noel Gallagher`s – High Flying Birds.



Relato escrito em 2011 (Recapitulando)

sábado, 1 de julho de 2017

Legião Urbana - Dois


Perdi meu carro hoje da maneira mais injusta que um homem poderia perder, era o meu carro, era um sonho realizado pois, qualquer homem independente da classe social sonha com um carro desde pequenino, eu não fui diferente. Ainda vislumbro na minha tenra idade com a tampa da panela da minha mãe nas mãos, como se fosse um volante de um carro imaginário e, eu andava em volta da casa dezenas vezes seguidas, fazia o barulho da buzina com a própria boca, trocava a marcha com gestos perfeitos como se o jogo de marcha estivesse ali no alcance da minha mão direita.
Meu Pai que Deus já levou a três décadas atrás, entrava de propósito no percurso do meu carro imaginário, e, por mais que eu tentasse desviar virando a tampa da panela rapidamente entre as mãos, fazendo o barulho da buzina quase que gritando e gesticulando agilmente as marchas como se elas existissem de verdade, meu Pai sempre dava um jeito de me atrapalhar.
_Sai da frente Pai, eu estou brincando – eu falava zangado e, meu Pai sorria desenfreadamente (Como sinto falta do meu Pai).  
Obtive meu primeiro carro só depois de casado, a cor branca foi a minha esposa que escolheu, como sou viciado em música a trilha sonora do primeiro passeio eu que escolhi, e foi assim que o álbum “Dois” da Legião Urbana entrou em nossa vida, entrou e não saiu mais, o aparelho ligava e desligava mas, CD travou dentro do rádio e, durante anos foi o único CD que ouvíamos pra qualquer lugar que fossemos.


Sensação horrível é olhar agora para garagem vazia, marcas de uma freada brusca da semana passada quando o Machida,  meu cachorro entrou na frente do carro, porém o mais triste foi quando a Alanis, uma gatinha siamês presente de aniversário do meu filho caçula, ela estava debaixo do carro, eu atrasado para o trabalho, o grito do meu filho e do gato foram simultâneos, puxei o freio de mão, abri a porta do carro e, deparei com Alanis no chão e uma poça de sangue ao seu redor, meu filho começou a gritar em minha direção:

_Pai, você matou meu gato, Pai você é muito chato, você matou meu gato – Testemunhei dezenas de lágrimas escorrerem do seu rosto, ele bateu a porta da sala com força e eu, comecei dar socos seguidos na lataria do carro, quebrei os retrovisores e não fui ao trabalho. Fiquei um mês sem dirigir mas, o carro estava ali, com lataria amassada, sem retrovisores porém, a garagem não estava vazia.


Bem, vou confessar o que aconteceu no dia que chegou o carro que, eu nunca contei pra ninguém e, ainda me faz arrepiar pensar no que sucedeu naquele dia. Depois do primeiro passeio eu esperei que minha esposa e o meu filho dormissem, a noite era fria, sai da cama andando com as pontas dos pés, abri a porta da sala adentrei no carro na garagem, no momento que toquei o volante uma lembrança tão sólida me fez enxergar a tampa da panela da minha mãe em minhas mãos, comecei passar as marchas ainda com o carro desligado e a fazer barulho de buzina com boca sussurrando pra não acordar ninguém. No entanto, foi a hora que acendi os faróis que eu vi meu Pai sorrindo na frente do carro, sorrindo desenfreadamente igualzinho na minha tenra idade, deixe-me levar pela emoção e cai com a cabeça no volante disparando o som irritante da buzina.
 Ai vem esposa correndo desesperada, o filho chorando, o cachorro latindo, a vizinha fofoqueira e o guarda noturno:
_O que aconteceu Rober? O que você está fazendo ai?
E, meu filho:
_” Conteceu” Papai?
E antes de responder eu apertei o play do Rádio:




No decorrer dos dias, dos meses eu notei que aquele carro ou qualquer outro carro que eu tivesse seria causadores das coisas mais estranhas da minha vida e das brigas mais banais também.
 Minha esposa tinha posição certa do seu banco se estivesse alguns milímetros fora ela sempre me questionava:

_Ué, Quem sentou aqui no meu lugar? Eu não deixei assim.

O pior de tudo quando eu dava carona para meus amigos de serviço obesos ou com uma estatura em cima da média.

_Já vou avisando vou dar carona mas, por favor não mexa na posição do banco, minha esposa fica louca com isso.

Engraçado tinha carona que nem conseguia respirar direito, espremido entre o banco e o painel do carro e, quando ligava o som:
_Pelo amor de Deus Roberval, Legião de novo?
Eu respondia:
_Quer ir no ônibus da empresa que você vai chegar quarenta minutos mais tarde na sua casa ou ouvir Legião?
E apertava o play:




Antes de adentrar na garagem eu parava um quarteirão antes e fazia o maior pente fino nos bancos, era até meio ridículo aquilo mas, eu não queria confusão ou briga. Era muito nojento aquilo também, no meios de moedas e cabelos, eu sempre encontrava alguns pêlos não sei exatamente oriundo da onde. Pior que as vezes alguns amigos de passagem pelo quarteirão indagava.

_E ai Roberval, precisando de alguma coisa ai? E tinha que inventar as desculpas mais esfarrapadas que existia naquele momento.

“Minha carteira caiu” “O cinto de segurança ficou preso aqui” “Procurando o celular”.

Às vezes eu esqueço o nome das pessoas que estudaram comigo, as que trabalharam também porém, eu não esqueço as pessoas que eu dei carona no meu carro. Lembro das conversas, dos sorrisos, dos olhares, das pessoas que bateram porta com força, das que ajudaram a empurrar o carro, das que choraram por perda de um relacionamento ou ente querido, das que recusaram colocar o cinto de segurança, as pessoas que eu tive que esperar no estacionamento do hospital por sofrer um mal súbito na madrugada ou grávida que sua bolsa d’água estourou...

_Rober, acorde minha esposa acabou de ter filho... Eu sou Pai Rober, é um menino.

Eu descia do carro ainda que cochilando e abraçava meu amigo. Lembro da primeira gravides da minha esposa, complicada e, não tínhamos carro e, quantas vezes fizeram o mesmo com a gente, pessoas que tinham que trabalhar e madrugava ali no estacionamento do hospital, pessoas que com o tempo vão deixando a nossa vida, afastando-se num processo natural do destino mas, que sempre lembraremos com muito carinho.



_Roberrrrr... A Lombada – E como esquecer estes gritos também, numa extensão de uma rodovia movimentada existem dezenas de lombadas porém, a minha paciência durava no máximo três lombadas.

_Porra, eu estou vendo a lombada cacete. Acha que sou cego, quer dirigir eu paro o carro e você vem no meu lugar- Depois do meu desabafo ela ficava quietinha com lágrimas nos olhos e, isto cortava o meu coração. No entanto, todo esse arrependimento durava pouco, exatamente até próxima lombada, o solavanco do carro e a batida do assoalho no chão.

-Porra agora que era pra você me avisar, você não me avisa, tá vendo como você é.

E o passeio do feriado prolongado já não tinha mais diálogos, até o pôr do sol atrás das montanhas era bem triste. Na hora de dormir ela virava-se para direção da parede e, quando eu tentava abraça-la, ela desvencilhava minhas mãos que tentava prende-la em meu corpo, eu apenas ouvia o seu soluço e suas lágrimas quentes que escorriam pelos meus braços noutra tentativa frustrada de um abraço apertado. Então, no meio da noite desorientado, eu levantava da cama e ia dormir no meu carro. Talvez eu não soubesse o quanto uma lombada pudesse arruinar meu casamento e, dentro do carro ouvindo a Legião Urbana, eu imaginava mil desculpas pra dizer para ela. 
Lá fora meus olhos testemunhavam algumas estrelas cadentes sumirem do céu e, mesmo que todas estrelas sumissem a lua cheia era enorme, centenas de vaga-lumes e grilos que cricrilavam do lado de fora do carro.
Será meu Deus que ela me perdoaria dessa vez? Na esperança eu adormecia com a cabeça entre o meus braços cruzados no volante, sonhando com corações brilhantes feitos pelos vaga-lumes, com estrelas rabiscando o céu sem se apagarem e corais de grilos cricrilando animados uma música da Legião Urbana.


Como muito sacrifício compramos um novo carro, mais moderno, mais potente e mais bonito. Logo no primeiro passeio com o carro sentimos que estava faltando algo, foi quando minha esposa teve a ideia de comprar o cd “Dois” da Legião Urbana e, era exatamente isto que estava faltando.
O carro tinha uma arrancada fenomenal, o painel era um espetáculo porém, as lombadas continuavam com solavancos piores. Eu já não ouvia mais seus soluços e nem sentia suas lágrimas, dormíamos e quartos separados. As estrelas também sumiram do céu, os grilos já não cricrilavam como antes e os vaga-lumes apagaram de vez o seu brilho.
 E, numa manhã fria no final de do outono minha esposa resolveu ir embora, levando consigo a minha rotina e, uma nova rotina foi surgindo, trancafiado dentro do carro ouvindo Legião Urbana dia e noite, até que dia chegou que um homem bem vestindo, um comprador que levou meu sonho embora.
 Os bens foram divididos como manda lei e, com minha parte tão logo comprei dezenas de panelas para fazerem das tampas volantes de carros imaginários. E, no escuro do meu quarto eu me divertia, desviando dos gatos, dos cachorros, diminuindo a velocidade quando enxergava as lombadas. Nas noites chuvosas eu parava num ponto imaginário e esperava por alguns minutos meu Pai que saia da escuridão e adentrava no carro imaginário, sorrindo desenfreadamente. 


Mas, um dia quebraram com violência a porta do meu quarto e a luz do dia cegou meus olhos... Vieram alguns homens truculentos chutando todas as panelas e me agarrando com uma força brutal e, me trouxeram nessa clínica na qual eu me encontro, com medicamentos controlados pelo o horário.
Ontem aqui na clínica foi um dia diferente, veio uma turma com violões, maquiados e com perucas. Cantando músicas religiosas, foi quando eu levantei as mãos e o cara do violão todo simpático me atendeu.

_ Olha só cara barbudo lá do fundo quer pedir uma música.

E todos olhares entorpecidos por medicamentos tarjas pretas ganharam a minha direção, até mocinha maquiada de palhaça, com um pandeiro nas mãos e olhos verdes olhou atentamente para mim. Então, eu disse ainda meio zonzo pelo efeito do último medicamento:

_ “Acrilic on canvas” da Legião Urbana.


E logo na introdução olhei pela janela lá fora na escuridão centenas de vaga-lumes apagando e acendendo suas luzes, vi a lua e estrelas cadentes rabiscando o céu, e eu me lembrei dela, desvestido dos rancores eu sorri em sua direção e, ela retribuiu. 

É saudade, então 
E mais uma vez 
De você fiz o desenho mais perfeito que se fez 
Os traços copiei do que não aconteceu 
As cores que escolhi entre as tintas que inventei 
Misturei com a promessa que nós dois nunca fizemos 
De um dia sermos três 
Trabalhei você em luz e sombra...


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