domingo, 17 de agosto de 2014

The White Stripes – White Blood Cells


The White Stripes – White Blood Cells

Ela é a única testemunha dos disparos que fizeram em minha cabeça, testemunhou o sangue jorrar enquanto eu caia, percebeu meus músculos languidos, minha fraqueza em não conseguir segurar em nada.  Meus olhos semiabertos, já sem brilhos quase sem vida detectaram o início de um sorriso em seus lábios.
Fiquei apagado por um dia ou algumas horas. Sei lá, não respiro, não sinto meus músculos, eu flutuo agora. Sim, eu fui assassinado, de uma forma covarde e jogado numa vala. Demorei algumas horas para entender o que havia acontecido. Eu tinha virado um fantasma, um espirito ou uma alma presa entre a vida e a morte. Sentando e encostado num tronco de arvore testemunhando meu corpo com sangue coagulado pelo meu rosto e moscas varejeiras por toda parte. Fiquei ali e, vi o sol esconder atrás das montanhas. Durante a noite animais noturnos, talvez lobos farejaram e mordiscaram o meu corpo. Sou uma alma presa entre a vida e a morte, que não sente sono e nem fome. Não sei motivo que estou preso aqui, é angustiante olhar para estrelas e saber que elas existem ainda, que seus brilhos não diminuíram nem um pouco. Sou eu que inexisto, que não respiro, que não anda, que não fala.

Quando o sol se pôs novamente comecei explorar a região, encontrei uma estrada de chão. Aliás é, uma estrada que eu estou bastante familiarizada, gostava de andar nessa região montanhosa e afastada do centro para tirar fotografias. Aproximei do lago sempre habitado por garças a procura de alimentação, a vantagem de ser invisível é poder chegar tão perto delas que nenhum zoom de máquina fotográfica jamais me deu este privilégio.


Talvez já fosse o meio do dia quando decidi voltar ao lugar que estava o meu corpo. Havia uma movimentação ao redor, duas viaturas de policias, um fotografo talvez da perícia e muitos curiosos. Encostei novamente na arvore e fiquei ali observando até retirarem o meu corpo dali, pensei em acompanhar mas, decidi ficar ali mais uma noite rodeados de vaga-lumes. Sei que chamariam alguém da família pro reconhecimento do corpo e eu, não estava preparado pra isso.

Quem foi que me assassinou? Por que ela não sai correndo? Por que ela não reagiu?

Decido voltar pra casa ou aonde um dia foi a minha casa e, num piscar de olhos eu já estava lá, é incrível como tudo isto funciona, o pensamento é o transporte da alma. O portão está trancado porém, constatei que realmente almas não precisam de chaves para nada. Atravessar as paredes da sala, do quarto e do banheiro não era nenhum obstáculo porém, não me fazia um herói e sim, trazia à tona que eu tinha sido assassinado covardemente e, por esse motivo eu estava preso entre a vida e a morte.
Na sala encontrei este álbum do The White Stripes – White Blood Cells, em cima do sofá, foi o último álbum que ouvi antes de sair com minha esposa para o cinema. Incrível que ao avistar o álbum ele tornou-se audível em meu ouvido na integra, não importava a direção que eu fosse ele continuava tocando faixa a faixa feito uma trilha sonora constante e repetitiva.


A casa está vazia...


De repente caiu a ficha: “Velório, velório. Ela deve estar no velório, o meu velório. ” Sai apressado atravessando paredes e, ao deparar com o portão ouvi o latido do cachorro Nero, um Rottweiler que ganhei de minha mãe ainda filhote. Olhei para trás e lá estava ele abanando o rabo em minha direção como se ele conseguisse me ver, então aproximei, e ele, preso em uma corrente tentava ficar de pé farejando e mexendo a cabeça de um lado pro outro querendo carinho atrás das orelhas que eu sempre fazia. Foram várias tentativas frustradas, sou apenas uma alma incapacitada do toque e, antes de atravessar o portão eu ouvi o choro de Nero.


Havia muitas pessoas em meu velório. Amigos que não viam há muito tempo, o Alexandre que tinha maior zelo com suas madeixas loiras ficou calvo, Franciele a miss estudante está obesa, na sombra de um ipê roxo florido sozinha com camiseta com a estampa The White Stripes minha ex-namorada Roberta, aliás a estampa do álbum que estou ouvindo repetitivamente.
Aproximo do caixão que está lacrado devido as mordidas dos lobos que esfacelaram meu rosto, minha mãe abraçada com minha irmã chorava ininterruptamente, minha esposa estática não chorava, imóvel e com um grande óculo de sol que vedava parte do seu rosto, busquei e não encontrei nenhum músculo que demonstrasse tristeza e, quando o coveiro jogou a primeira pá de terra sob o caixão, o mesmo início de sorriso que morre no canto dos lábios antes de tornar-se um sorriso é testemunhado pelos olhos, é o mesmo do dia fatídico.

Porra Renata... O que está acontecendo? Por que suas lagrimas não estão deslizando? Por que você não perde controle? Por que não desmaia e rola pelo chão? Por que você não grita e clama por justiça?  Por que não chama pelo meu nome?


Ouvir dizer e assisti também em muitos filmes que o assassino sempre aparece nos enterros, então comecei vagar aos arredores na procura do assassino, pois, precisava de respostas e talvez por isso eu estava preso entre a vida e a morte. E, nessa busca meus olhos outra vez testemunharam a beleza de Roberta abrilhantada com algumas flores do ipê roxo que desprendiam de seus galhos, avancei meu olhar mais distante, pessoas que nunca vi, curiosos comovidos, um policial fardado entre as rosas vermelhas depositada em um tumulo e a trepadeira que cobria o muro. Aproximei como se estivesse sendo atraído por um imã, numa velocidade inenarrável. Era ele, sem dúvida nenhuma, aquele policial que tinha feito os disparos. Não consegui me segurar, dei uma voadora tentando atingir o seu rosto e, foi um fiasco total atravessei-o sem atingi-lo, e, todos os meus palavrões ele também não ouviu.


Voltei pra minha casa ou melhor: meu ex lar, pois no fundo eu tinha certeza que as respostas estariam ali atreladas nas paredes daquela casa, trancafiadas em algum cômodo, na escuridão de algum canto. Os dias passaram quase monótonos por duas semanas sendo quebrada apenas com à visita do vizinho da frente o “Seu Chico”, uma grande figura, fã de Elis Regina que, alimentava o Nero religiosamente sempre assobiando alguma canção da Elis.


Durante este período passei o maior tempo no sótão sempre com a música do The White Stripes presente, e em meios de tantas bugigangas encontrei uma velha máquina de datilografia. Lembrei-me o quanto ela foi útil na minha adolescência. Aqui no sótão foram dias tentando tocar uma tecla, dias frustrantes sem êxito nenhum, apostei comigo mesmo que seria a última tentativa, concentrei profundamente que o mundo ficou mais lento, mais frio e inóspito. O meu dedo em câmera lenta sente pela primeira vez o toque, é audível e não é nenhuma nota da guitarra de Jack White.

Só saio do sótão no meio da madrugada para brincar com Nero que consegue me ver ou perceber minha presença. Ele pula, late, abana o rabo e corre o quintal inteiro. Porém foi numa noite de lua cheia que aconteceu uma coisa muita estranha, Nero se aproximou calmamente com olhos sem brilho, estava ofegante e com língua de fora, seu rabo inerte não balançava mais, parou de latir também, apenas gemia, dolorosamente gemia. Foi nesse momento de aproximação que senti uma forte ligação com o animal, não existia mais lua e nem estrelas. Fui atraído literalmente falando, possui o corpo de Nero, possui suas presas, seus olhos, suas orelhas, tudo de Nero me pertencia. Experimentei com o êxito latir, depois rosnar, correr atrás de gatos e mata-los com extrema violência. Descobri que possuindo o corpo do animal liberava em mim, minhas vontades mais sacanas que no mundo racional era camuflada atrás da culpa religiosa, do caráter, do marido caridoso e do pai amável, mas possuindo o corpo animal a estranha figura violenta e sanguinolenta desmascarava o que realmente sou.


Depois de duas semanas Renata voltou pra casa, pra nossa casa. Já é mais de meia-noite Nero começa a latir sem parar. Então ela abre o portão esbraveja:
_ Quieto seu cachorro estupido – Entra um carro na garagem que não é o meu.

Saio do sótão curioso e aproximo flutuando da mesma maneira que fantasma é visto em filme, Nero me vê e começa abalançar o rabo e a pular, Renata percebe a alegria do cachorro sem entender nada.

_Amorzinho posso descer? O cachorro não morde? – Indagada uma voz de homem vindo de dentro do carro.
“Amorzinho” essa palavra fica dando voltas em minha cabeça cada vez mais rápida e a música que ouço agora é “We´re Going To Be Friends".



 Eis que surge de dentro do carro o homem que me assassinou, o mesmo que encontrei no meu funeral:
_Seu filho da puta, desgraçado... – Outra vez minhas agressões não resultaram em nada, eu era apenas um fantasma, não conseguia atingi-lo.

Meu Deus, me assassinaram e minha esposa era cúmplice. Porra eu nunca desconfiei de nada. Sempre foi o meu erro acreditar demais nas pessoas. Tive vontade de chorar mas, fantasma não têm lagrimas, lancei um olhar pro céu e testemunhei a grande lua cheia rodeadas de estrelas reluzentes, notei também que algumas flores no jardim não se fecham durante à noite.
Ouço os passos de Nero ele está novamente com aquele olhar sem brilho e ofegante, seu rabo está inerte e o gemido doloroso. Nero me chama com o seu olhar, me convida a possui-lo novamente, solicita minha presença e eu, uma alma perturbada, triste e cheio de ódio, possuo novamente seu corpo, suas presas, sua força, suas patas. Eu rosno, eu lato e eu arreganho os dentes.



Renata abre a porta para espiar o que está acontecendo e grita:
_ Cachorro estupido fica quieto – arranca seus sapatos de salto alto que eu comprei e atira com ódio. Nesse exato tenha a sensação que alguém aumenta o volume no máximo e a música é:


Quem você pensa que está
Enganando garota
O que você pensa
Que está fazendo?
Você pensa realmente que
Eu queria ser ruim desse jeito?
Quem você pensa
Que está enganando?

Corro em sua direção sem dar tempo de fechar a porta e, com uma mordida certeira em sua jugular ela cai já sem reação, o sangue esguicha pela sala adentro enquanto ela tenta em vão tapar com as mãos o ferimento. Percebo ao lado da televisão seu amante tremulo e com uma arma apontada pra mim, rosno tão alto que ele recua dois passos, chegando encostar na geladeira na cozinha, adianto vagarosamente em sua direção, ele aperta o gatilho repetidas vezes mas, continuo caminhando em sua direção. Ele recarrega outra vez à arma dispara novamente porém eu continuo caminhando em sua direção. Quando ele tenta correr eu avanço mordidas estratégicas e profundas findam sua respiração.

Exaurido minha alma desapossa de Nero, aturdido e ainda transe meus olhos embaçados presenciam o corpo de Nero sem vida em uma poça de sangue. Meu Deus nem pude despedir-me pois, animais não tem alma.
Voltei pro sótão, sabia que eu não tinha muito tempo ali. Concentrei me nas teclas da máquina de escrever...



Esse texto foi me entregue por garota num barzinho aqui da cidade. Ela se apresentou dizendo que chamava Roberta, usava uma camiseta do The White Stripes, disse que era fã do Blog Relato Estrépito e, sumiu...





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