Vi uma moça balançando uma criança no colo e, isto me deixou
um tanto triste devido uma lembrança de uma época que era muito feliz. Continuei o
meu caminho deslizando minha mão direita pela grade de uma escola, uma senhora me
pediu esmola na calçada eu fingi que não enxerguei, meu coração estava fora de
ritmo, sudorese e visão embaçada. Sem rumo andando pelas ruas do centro,
vertigens me fazia segurar em algum poste pra não cair, transeuntes me olhavam
assustados, trocavam de calçada só pra não passar perto de mim. Confesso que eu
estava vivendo mais tempo acordado nos bares que na minha própria casa. Sentia
me inútil, com os cotovelos no balcão e minha cabeça apoiada nas mãos. A Dona
do bar, uma mulher de meia idade, chinesa que tinha uma certa dificuldade pra
falar em português, sempre que testemunhava aquela cena dizia:
_Vai pra casa, você é uma cara bom, não se parece com nenhum
frequentador daqui. Vai descansar.
Sai do bar sem nenhuma vontade de chegar em casa, a cada
passo que eu dava parecia que tudo tremia: a calçada, os carros, as casas, os
postes, a senhora que ainda pedia esmola. Pensei em deitar na calçada mas, me
veio em pensamentos os conselhos de minha mãe e, em passos lentos eu consegui
chegar em casa. O cachorro estava faminto, abanava o rabo com alegria mesmo
ficando horas sem comer. Abri o portão e desabei na varanda, o cachorro estava
todo feliz pulando em cima de mim.
Mas, minutos depois eu me estressei com o cachorro, palavras
de baixo escalão num grito raivoso, irrompendo toda sua alegria, ele apenas
abanou o rabo vagarosamente sem aquela alegria de antes. Meu cachorro parece
entender tudo o que ocorre em minha vida, parece que ele sabe que eu não estou
bem, já não late como antes, e, eu já não o levo para passear comigo como nos
primeiros dias que ele chegou aqui. Até o seu banho que deixava-o tão feliz
tornou-se escasso. Ainda assim ele sempre me observa de longe, acompanha todos
os meus movimentos e, quando eu saio deixando ele trancado, eu ouço seu choro
lá da esquina, acho que ele tem medo que eu nunca mais volte.
Acendi a luz da sala, o meu colchão no chão é testemunho que
eu não conseguia mais dormir no quarto, cinzas de cigarros, garrafas de vinho, livros
e a televisão que eu esqueci ligada. Fui pra cozinha, um amontoado de louças na
pia, a lixeira lotada de latinhas de cerveja, teias de aranha no canto do teto.
Apoiei me na mesa pra não cair, vertigem de um mundo que aos poucos iam
deixando de existir mas, que eu vivi com muita intensidade. Abri a geladeira
não havia frutas, não havia leite e nem agua. Peguei uma latinha cerveja e sentei
no chão de pisos tortos e, recortes irregulares. O cachorro uivava, uma espécie
de choro querendo entrar insistentemente, batia as patas na porta da cozinha.
Ouvi o vizinho proliferar um palavrão:
_Puta que pariu, agora essa praga de cachorro não que fica
quieto.
Acordei com alguém me chamando, o cachorro continuava
latindo, a latinha de cerveja caiu no piso da cozinha de piso irregulares, apoiei
me na pia pra me levantar. Ainda estava tudo girando, alguém continuava a
berrar meu nome do outro do portão. O cachorro latindo e tudo girando. Eu já
tive dias melhores aqui nesta casa mas, também está tudo se apagando da minha
memória, a cada dia que passa vai sumindo os sorrisos, as vozes e os gestos,
vai ficando apenas as trincas nas paredes.
Eu consegui chegar até a porta me apoiando nas paredes,
quando sai o cachorro pulava em minha direção e, com o punho fechado desferi um
golpe direto, quase nocauteando, ele ainda me olhava com carinho encostado no
pneu do carro na garagem.
_”Caraio” tá surdo, tô meia hora te chamando.
É Sophia com ph. Conheci Sophia alguns meses atrás, num
barzinho do centro da cidade. Eu tinha acabado de sair de um relacionamento,
Sophia de vários mas, os nossos olhos se encontraram e, depois da terceira
cerveja ela já estava na minha mesa, para duas horas depois estar em cima da
minha cama. Somente depois do sexo que, pra mim era uma espécie de alivio,
conversamos. Descobri que ela realmente não tinha nada ver comigo porém, tinha
um corpo espetacular, um belo sorriso e olhos castanhos profundos. Mas, e daí???
Eu estava sem ninguém, sem rumo nenhum, tentando entender coisas sem
explicações e, Sophia falava o tempo todo, cada coisa absurda sem nexo nenhum
mas, eu ria segurando seus seios enormes com minha mão direita e acariciando o
seu piercing no umbigo com minha mão esquerda. Sophia era enigmática as vezes
ela sumia diante dos meus olhos e, reaparecia sorrindo atrás de mim, outrora
desaparecia por dias depois voltava como uma doida varrida. Sophia tornou-se
nos meses seguintes o meu segundo inferno:
_Fala Sophia – Deixei o portão entreaberto.
_Tô precisando de dinheiro.
_Eu não tenho dinheiro agora.
Sophia tentava me seduzir a qualquer preço, ergueu o seu
topzinho crochet e deixando os seios enorme de fora, fingi não enxergar e ser
forte, nenhuma “noinha” em nome de Jesus iria me seduzir naquela noite. E, por
um momento eu conseguia ser forte mas, um simples olhar de soslaio fazia a
batida do meu coração acelerar, o cachorro pressentia o perigo mesmo ferido se
levantou e começou a latir raivosamente para Sophia, mostrando os dentes afiados
com um desejo enorme de morde-la. Sophia amedrontada abaixou o topzinho crochet
e, eu enlouquecido com tudo aquilo chutei o cachorro.
Sophia gritou num desabafo e assustada:
_Esse cachorro é do mal. Você tem que dar um fim nesse
cachorro Roberval, ele vai acabar mordendo alguém a qualquer hora.
Olhei pro cachorro com pensamentos perversos como
abandona-lo em uma rua qualquer ou entrega-lo para adoção. Porém, por mais
pirado que a vida tivesse me deixado nesses últimos meses, eu conseguia ver
mais dignidade no olhar do meu cachorro que nos olhos castanhos profundos da
Sophia aliás, eu conseguia ver mais dignidade no olhar do meu cachorro do que
qualquer pessoa que eu tenho encontrado nesses últimos meses.
Com a cabeça baixa
pro meu cachorro eu convidei Sophia pra entrar e, nada mais que vinte minutos e
cinquenta reais pra que Sophia fosse embora toda sorridente. Fechei o portão e
olhei para cachorro e gritei:
_ Porque você tá me olhando assim pra mim porra? Porque você
olha assim pra mim? Desgraçado, “mardito”, vai puta que pariu.
E o cachorro mesmo que sentado só abanava o rabo na minha
direção. Senti ódio do meu cachorro, senti ódio de Sophia, senti ódio de todo
mundo e um desejo enorme de desaparecer.
Levei o colchão para quarto e, fui dormir no sofá na sala
com cheiro de Sophia impregnado no meu corpo, uma mistura de perfume da Avon “Luiza
Brunet”, com cigarros baratos. Tinha pesadelos constantes durante a noite naqueles
últimos meses, sentia que meu corpo levitava pela casa inteira, acordava
assustado as vezes no banheiro, outrora na cozinha.
Como eu ia parar nesses lugares? Eu não tinha respostas?
Naquela noite que
Sophia foi embora eu acordei no banheiro, ainda com olhos embaçados fui para
sala enxerguei na minha frente um casal velho me encarando sentados no sofá,
com o corpo todo arrepiado, e, com duas mãos esfreguei meus olhos
freneticamente, abri meus os olhos e o casal de velho não estava mais ali.
Era exatamente três horas da madrugada quando olhei no relógio
de parede, acendi a luz da varanda, espiei pelo vitro, o cachorro estava
pulando de alegria, brincando com algum ser invisível, nem me deu atenção, nem
mesmo quando o chamei pelo nome. Voltei meu olhar para o sofá, e, novamente o
casal de velhos estava em cima me encarando.
Com uma fúria desproporcional joguei o sofá no quintal,
espalhei álcool em cima e ateei fogo que, alastrou-se rapidamente, somente
nesse momento que o cachorro aproximou-se, e começou a latir ferozmente, vozes do
vizinho proliferaram novos palavrões:
_Desgraça. Porra do inferno. Tá querendo colocar fogo na
casa.
Por sorte ninguém denunciou, ficamos ali até fogo acabar eu,
e o cachorro. Quando adentrei o sol já estava pra nascer, fui direto para o
quarto, estava cansado que desmaiei na cama. Acordei atordoado com o sol do meio
dia, a sala sem o sofá me causou uma certa estranheza, fiquei ali um tempo com
olhar paralisando um, talvez dois minutos até o cachorro latir do lado de fora.
Abri a porta e levei um susto tremendo, não havia nenhum vestígios da fogueira,
nem cinzas do sofá, o quintal estava organizado e limpo, a vizinha do outro
lado em cima de uma cadeira podava suas samambaias métricas, olhou
afetuosamente em minha direção e sorriu, respondi com um balançar de cabeça sem
entender nada.
Os dias passaram e o casal de velho nunca mais apareceu e,
Sophia nunca mais voltou, as vezes tenho convicção que ela nunca existiu, que
tudo foi um surto de alucinação, que nada aconteceu, só os dias que se passaram
e a primavera já havia terminado.
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