domingo, 20 de agosto de 2017

Raul Seixas - Krig Ha Bandolo


No bar um senhorzinho com os cabelos grisalhos, o rosto sulcado, as unhas sujas e carcomidas, as roupas com respingos de tintas, um pintor de construção de civil eu deduzi. Sorria descontraidamente, dois copos de cachaça goela abaixo depois, dezenas de caretas. Pede o violão pro dono do bar, só então reparei que sua unha do dedo anelar estava roxa, certamente uma martelada errada que custará daqui uns dias a perda da unha. Nos primeiros acordes ele logo percebeu que o violão precisava de afinação e, quando ele afinava vislumbrei o local aonde eu me encontrava, só pessoas que deram erradas na vida. Na extensão do balcão homens cabisbaixos, banguelas, com tiques pavorosos como mexer as sobrancelhas sem parar ou movimentar o ombro pra cima repetidamente, tinha uma moça que ficava girando um molho de chaves sem parar, um pedinte querendo salgado e uma mulher com shorts curto com cara de periquito que, piscava seus olhos pra todos os homens que estavam ali, ela piscou pra mim também. É, na verdade eu fazia parte das pessoas naquela extensão do balcão, pessoas que deram errado na vida.  Alcoólatras, assassinos, prostitutas, desempregados, desamados, bipolares, enfim... O senhor de cabelo grisalho começou a cantar:



Eu prefiro ser

Essa metamorfose ambulante
Eu prefiro ser
Essa metamorfose ambulante
Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo
Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo


Aconteceu uma coisa estranha naquele momento, houve um silencio na plateia de pessoas que deram errado na vida, testemunhei lágrimas que escorriam dos olhos dos desdentados, das prostitutas e dos assassinos, lágrimas silenciosas e preguiçosas, alguns tentavam disfarçar olhando para o teto, outros que pediam pra garçonete mais uma dose de alguma bebida mais forte. Eu fiquei perdido ali em pensamentos, absorto, infeliz, incapaz de me mover, até pedi pra Deus que convertesse toda aquela minha tristeza, toda aquela mágoa que tomava posse do meu corpo em lágrima porém, Deus que foi capaz de transformar a água em vinho não conseguiu transformar minha mágoa em lágrimas.

Alguns dias depois, eu caminhava pelo centro da cidade de Pindamonhangaba, confesso que já havia ingerido bebida alcoólica suficiente que, a cada passo que eu dava tudo ao redor tremia: os carros, transeuntes, arvores, monumentos históricos e até cachorro que fuçava o lixo. No meu pensamento Franciele, metade da minha idade e metade do meu conhecimento. Não lia, não interessava por cinema, não torcia para o Corinthians, nunca ouviu falar do Nirvana porém, tinha um corpo acima da média.



Tomei coragem e convidei-a para ir barzinho que tocava bandas covers de rock, achei que ela poderia gostar do Guns n Roses. Quem não gosta de Guns N Roses? Pra ser sincero eu não gosto porém, a maioria das pessoas que eu conheço gostam. Franciele gostou da cerveja e da pizza. Enfim, não gostou da banda, reclamou várias vezes do barulho da guitarra e da bateria, achou o vocalista desafinado e gordo. Eu que não gosto do Guns no entanto, queria ficar até o fim da apresentação. Ela não, queria ir embora de todo jeito e, quando levantou-se, deixando à mostra aquele piercing no umbigo me convenceu de ir embora.

_Vou levar você num rolêzinho, só pra você ver o que é diversão.

Bem, depois de tanta insistência de Franciele aceitei o convite para um rolezinho, o lugar era conhecido como Praça da Bíblia, muita gente, a praça lotada. Talvez, eu demorei um pouco para perceber que estava no meio de crianças de quatorze e dezesseis anos de idade a grande maioria, crianças chapadas de bebidas alcoólicas, chapadas de maconha, meninas com roupas curtíssimas dançando ou sei lá, insinuando. Carros, muitos carros com sons potentes, a música funk com letras de apelos sexuais, Franciele rebolava na minha frente com metade da bunda pra fora.



_Cê tá gostando amor?

No momento que Franciele me fez está pergunta veio em minha cabeça o meu escritor favorito, o depravado Henry Miller que, sua trilogia Sexus, Plexus e Nexus, tornava-se tão pequena e inocente diante que meus olhos testemunhavam ali. A bunda Franciele era linda, parecia um coração de tão perfeita que era. Porém, naquele dia eu fiquei tão perplexo com todo aquele movimento que, a bunda de Franciele nada mais era que uma bunda dançante descontrolada no meio daquele alvoroço de bundas descontroladas.

Longe daquele tumulto eu avistei viaturas da polícia estacionando próximo ao local, com cassetetes nas mãos, começaram a correr em nossa direção. Franciele me puxou pelos braços:

_Corra a polícia – Gritou ela.

Comecei a correr sem saber o porquê? A corrida me fez sentir uma adrenalina incrível, de certa forma me fez voltar a minha adolescência quando eu corria do terrível Manuel, o dono de um sitio, onde eu meus amigos íamos furtar laranjas, o terrível Manuel saia com uma espingarda de chumbinho feito louco atrás da gente mas, tínhamos quatorze, quinze anos de idade com um folego e energia incrível.
Muito bem lembrado, eu já não tinha quatorze anos de idade e o folego já não era o mesmo, não conseguia acompanhar Franciele naquela corrida louca, foi quando a pancada de cassetete na minha nuca me fez cair, Franciele ria com seus amigos daquela aventura que pra mim tinha acabado.

Ouvi o policial falando todo eufórico para o seu superior:

_Pegamos o traficante, Senhor.

Enquanto veio outro policial e com os seu coturno me deu chute na minha barriga que, perdi quase por completo a respiração, levantaram me com brutalidade e me questionando:

_Cadê as drogas, hein?

_Senhor, eu sou trabalhador – Disse isto com muita dificuldade.

Foi explosão de risos dos policias.

_Sargento o indivíduo aqui falou que é trabalhador – E continuaram rindo, foi então que o sargento aproximou-se, eu cabisbaixo com uma dor enorme na barriga, não tinha coragem de olhar para Sargento, tinha medo de levar uma bofetada no rosto. Percebi que ele ficou parado na minha frente e então, resolvi lentamente olhar em sua direção.

_Nossa! Era mesmo quem estava pensando. Que você está fazendo aqui, rapaz?

O sargento da polícia era um velho amigo, servimos o serviço militar junto e continuou:

_Aqui não é lugar pra você, nem combina contigo. Vai dizer que está ouvindo funk agora?

Nem esperou qualquer explicação minha, olhou para os seus comandados e disse:

_Ele está liberado, não é o traficante.

Quando os policiais foram embora me deixando ali, as dores na barriga aumentaram consideravelmente, minha sorte que a Praça da Bíblia é próximo do Pronto Socorro, e, com muita dificuldade consegui chegar lá. A dor era tanta que comecei a gemer sentando, a demora para passar na triagem aumentava o meu desespero, uma mulher do meu lado tirou o celular da bolsa e começou a me filmar. Questionei:

_Moça, você está filmando moça, sério isso?

_Vou enviar para o Facebook, na página Pinda Cidadã. A culpa é do prefeito – e conferindo a gravação complementou: Nossa vou receber muitas curtidas. Valeu moço!

Dizendo isto foi embora.

Passei pela triagem e fui atendido pelo médico, já era quase vinte três horas. O médico parecia mais preocupado com o seu celular:

_Então, o que vc está sentindo? – indagou o médico olhando de soslaio para minha direção mas, preocupado mesmo com o celular.

_Estou com uma dor terrível na barriga – e o médico me interrompeu, largando o celular e pegando a caneta para fazer a receita de medicamentos.

_Já sei, é virose, você é o quarto paciente que vem aqui com os mesmos sintomas.

E foi logo escrevendo a receita.

_Doutor, eu levei um chute na barriga de um policial.

Não sei ao certo o que médico pensou mas, ficou amedrontado, talvez pensando que eu fosse um bandido de alta periculosidade, abriu a gaveta apressadamente e me deu alguns remédios de amostras grátis para dor e infecção, só não tirou raio x pois, o aparelho do Pronto Socorro estava quebrado.

Noutro dia acordei cedo com um pouco dor na barriga ainda apesar, do remédio que havia tomado antes de dormir para aliviar a dor. Queria tirar foto, tinha necessidade de sair para ruas clicando tudo que meus olhos testemunhassem pela frente, fotografia pra mim tinha transformado como válvula de escape, jamais pensei em ganhar dinheiro com fotografia, eu só queria que minha fotografia retratasse o que eu estava sentindo, que se fosse dor, rancor ou mágoa que transmitisse da forma mais bonita possível.

Foi nesse dia que eu reencontrei o senhorzinho de cabelos grisalhos que tocava violão no barzinho e, se não fosse a música do Raul Seixas acho que passaria direto sem perceber que ele estava ali sentando,encostado num monumento da praça, acho que é uma águia que tem na Praça Monsenhor Marcondes. Bem, a música era “Rockixe”:



Você é forte, faz o que deseja e quer

Mas se assusta com o que eu faço, isso eu já posso ver
E foi com isso justamente que eu vi
Maravilhoso, eu aprendi que eu sou mais forte que você.


Sentei do seu lado como se a música do Raul Seixas me atraísse como imã, ele estava com radio pequeno e antigo com um toca fita que naquele que momentos depois começou tocar “Cachorro Urubu”, num coro desafinado comecei a cantar com ele:





Todo jornal que eu leio

Me diz que a gente já era
Que já não é mais primavera
Oh baby, oh baby, a gente ainda nem começou


Perguntei:

_Você se lembra de mim?

O senhorzinho me encarou por alguns segundos.
_Lógico que me lembro, você era o cara que estava no bar alguns dias atrás, estava perdido, com olhos tristes, pensativo. Você é o cara das fotos, certo?

E antes que eu pudesse responder ele continuou:

_Amo suas fotos apesar, de ver algo gritante nas entrelinhas.



Eu disse:

_Você gosta do Raul, hein?

_Kri-ha, Bandolo é o álbum da minha vida.




Ficamos em silencio quando tocava Ouro de Tolo, reparei que tinha um taxista que olhava a todo momento para nossa direção, os pombos também já faziam presentes na praça, azaleias floridas com visitas de alguns beija-flores. O taxista aproximou e disse com olhar triste para o senhorzinho de cabelo grisalho:

_Você perdeu sua bicicleta.

_Como assim?

_Aquele homem que pegou sua bike, não volta mais.

_Como você sabe?

_Olha, acabaram de postar a foto dele na página Pinda Cidadã “ladrão de bicicleta”. Daí, eu pensei “Porra esse cara estava quase agora aqui”.

O senhorzinho levantou desorientado:
_Filha da Puta – Caminhou até o ponto de taxi, olhou demoradamente para direita, coçou a cabeça com as duas mãos, voltou-se vagarosamente e, sentou-se ao meu lado, aumentou o volume do som e disse olhando pra mim:- Não acredito e, seu falar pra você, você também não irá acreditar.

Quando a fita terminou, ficou um tempo rebobinando a fita do seu radio, quando terminou apertou o play e a voz de Raulzito novamente se fez presente:

_Minha Bicicleta nem é tão nova assim, o valor é mais sentimental foi presente de aniversário de minha filha – Tentou espantar os pombos que se aproximavam mexendo os braços num vai e vem.

_Desgraçado – Continuou:- Foram três dias de lábias pra conseguir minha bicicleta, você acredita nisso?

_Como assim? Questionei.

_Há dois dias atrás estava eu aqui logo de amanhã, ouvindo o meu Raul Seixas como sempre faço quase todos os dias e, esse indivíduo aproximou-se bem apessoado, com linguajar diferenciado, reparou minhas calças sujas de tintas e não titubeou foi logo perguntando

“Você trabalha em construção civil?”. Eu respondi que era pintor então, ele me falou que trabalhava em sociedade com um amigo, que era mestre obra e, iria pegar uma obra grande e que precisaria de pintor. No dia seguinte ele voltou aqui de manhã falando que tudo estava certo, falou o quanto eu ganharia por dia que, me pegava ali mesmo na Praça, colocaria a bicicleta em cima da caminhonete do seu sócio e, iriamos até local, que eu não precisaria levar almoço e café, a firma forneceria tudo. Acreditei piamente no que ele dizia.

Riu olhando para direção do último beija-flor que restava na bela azaleia florida e continuou:

_Eu compareci aqui hoje, bem antes do horário combinado, precisando de serviço e com o aluguel atrasado. Ele apareceu sorridente vestido como um grande empresário. Cumprimentou com um abraço demorado, perfume forte, pensei, deve ser caro, bem diferente do desodorante que eu uso e, quando uso. Olhou para o relógio e, foi logo dizendo: “Estamos com um pequeno probleminha aqui, meu celular ficou no Centro comercial e, eu estou sem contato com o meu sócio. No entanto, o rapaz do centro comercial que arruma celular abriu uma exceção para mim, disse que poderia pegar o celular agora de manhã. Você não emprestaria sua bicicleta só pra mim pegar o celular ali, é rapidinho.”  
Porra como eu ia desconfiar de um cara bem apessoado iria roubar uma bicicleta seminova. Meu Deus o que está acontecendo com mundo?



Sai dali triste com toda aquela historia foi quando Franciele me ligou:
_E ai, o que rolou com a policia?

Olhei para os pombos, para azaleias floridas da praça e desliguei o celular sem ao menos dizer alô.


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