Perdi meu carro hoje da maneira mais injusta que um homem
poderia perder, era o meu carro, era um sonho realizado pois, qualquer homem
independente da classe social sonha com um carro desde pequenino, eu não fui
diferente. Ainda vislumbro na minha tenra idade com a tampa da panela da minha
mãe nas mãos, como se fosse um volante de um carro imaginário e, eu andava em
volta da casa dezenas vezes seguidas, fazia o barulho da buzina com a própria
boca, trocava a marcha com gestos perfeitos como se o jogo de marcha estivesse
ali no alcance da minha mão direita.
Meu Pai que Deus já levou a três décadas atrás, entrava de
propósito no percurso do meu carro imaginário, e, por mais que eu tentasse
desviar virando a tampa da panela rapidamente entre as mãos, fazendo o barulho
da buzina quase que gritando e gesticulando agilmente as marchas como se elas
existissem de verdade, meu Pai sempre dava um jeito de me atrapalhar.
_Sai da frente Pai, eu estou brincando – eu falava zangado e,
meu Pai sorria desenfreadamente (Como sinto falta do meu Pai).
Obtive meu primeiro carro só depois de casado, a cor branca
foi a minha esposa que escolheu, como sou viciado em música a trilha sonora do
primeiro passeio eu que escolhi, e foi assim que o álbum “Dois” da Legião
Urbana entrou em nossa vida, entrou e não saiu mais, o aparelho ligava e
desligava mas, CD travou dentro do rádio e, durante anos foi o único CD que
ouvíamos pra qualquer lugar que fossemos.
Sensação horrível é olhar agora para garagem vazia, marcas
de uma freada brusca da semana passada quando o Machida, meu cachorro entrou na frente do carro, porém
o mais triste foi quando a Alanis, uma gatinha siamês presente de aniversário
do meu filho caçula, ela estava debaixo do carro, eu atrasado para o trabalho,
o grito do meu filho e do gato foram simultâneos, puxei o freio de mão, abri a
porta do carro e, deparei com Alanis no chão e uma poça de sangue ao seu redor,
meu filho começou a gritar em minha direção:
_Pai, você matou meu gato, Pai você é muito chato, você
matou meu gato – Testemunhei dezenas de lágrimas escorrerem do seu rosto, ele
bateu a porta da sala com força e eu, comecei dar socos seguidos na lataria do
carro, quebrei os retrovisores e não fui ao trabalho. Fiquei um mês sem dirigir
mas, o carro estava ali, com lataria amassada, sem retrovisores porém, a
garagem não estava vazia.
Bem, vou confessar o que aconteceu no dia que chegou o carro
que, eu nunca contei pra ninguém e, ainda me faz arrepiar pensar no que sucedeu
naquele dia. Depois do primeiro passeio eu esperei que minha esposa e o meu
filho dormissem, a noite era fria, sai da cama andando com as pontas dos pés,
abri a porta da sala adentrei no carro na garagem, no momento que toquei o volante uma
lembrança tão sólida me fez enxergar a tampa da panela da minha mãe em minhas
mãos, comecei passar as marchas ainda com o carro desligado e a fazer barulho
de buzina com boca sussurrando pra não acordar ninguém. No entanto, foi a hora
que acendi os faróis que eu vi meu Pai sorrindo na frente do carro, sorrindo
desenfreadamente igualzinho na minha tenra idade, deixe-me levar pela emoção e
cai com a cabeça no volante disparando o som irritante da buzina.
Ai vem esposa
correndo desesperada, o filho chorando, o cachorro latindo, a vizinha
fofoqueira e o guarda noturno:
_O que aconteceu Rober? O que você está fazendo ai?
E, meu filho:
_” Conteceu” Papai?
E antes de responder eu apertei o play do Rádio:
No decorrer dos dias, dos meses eu notei que aquele carro ou
qualquer outro carro que eu tivesse seria causadores das coisas mais estranhas
da minha vida e das brigas mais banais também.
Minha esposa tinha
posição certa do seu banco se estivesse alguns milímetros fora ela sempre me
questionava:
_Ué, Quem sentou aqui no meu lugar? Eu não deixei assim.
O pior de tudo quando eu dava carona para meus amigos de
serviço obesos ou com uma estatura em cima da média.
_Já vou avisando vou dar carona mas, por favor não mexa na
posição do banco, minha esposa fica louca com isso.
Engraçado tinha carona que nem conseguia respirar direito,
espremido entre o banco e o painel do carro e, quando ligava o som:
_Pelo amor de Deus Roberval, Legião de novo?
Eu respondia:
_Quer ir no ônibus da empresa que você vai chegar quarenta
minutos mais tarde na sua casa ou ouvir Legião?
E apertava o play:
Antes de adentrar na garagem eu parava um quarteirão antes e
fazia o maior pente fino nos bancos, era até meio ridículo aquilo mas, eu não
queria confusão ou briga. Era muito nojento aquilo também, no meios de moedas e
cabelos, eu sempre encontrava alguns pêlos não sei exatamente oriundo da onde.
Pior que as vezes alguns amigos de passagem pelo quarteirão indagava.
_E ai Roberval, precisando de alguma coisa ai? E tinha que
inventar as desculpas mais esfarrapadas que existia naquele momento.
“Minha carteira caiu” “O cinto de segurança ficou preso aqui”
“Procurando o celular”.
Às vezes eu esqueço o nome das pessoas que estudaram comigo,
as que trabalharam também porém, eu não esqueço as pessoas que eu dei carona no
meu carro. Lembro das conversas, dos sorrisos, dos olhares, das pessoas que
bateram porta com força, das que ajudaram a empurrar o carro, das que choraram
por perda de um relacionamento ou ente querido, das que recusaram colocar o
cinto de segurança, as pessoas que eu tive que esperar no estacionamento do
hospital por sofrer um mal súbito na madrugada ou grávida que sua bolsa d’água estourou...
_Rober, acorde minha esposa acabou de ter filho... Eu sou
Pai Rober, é um menino.
Eu descia do carro ainda que cochilando e abraçava meu
amigo. Lembro da primeira gravides da minha esposa, complicada e, não tínhamos
carro e, quantas vezes fizeram o mesmo com a gente, pessoas que tinham que
trabalhar e madrugava ali no estacionamento do hospital, pessoas que com o
tempo vão deixando a nossa vida, afastando-se num processo natural do destino
mas, que sempre lembraremos com muito carinho.
_Roberrrrr... A Lombada – E como esquecer estes gritos
também, numa extensão de uma rodovia movimentada existem dezenas de lombadas
porém, a minha paciência durava no máximo três lombadas.
_Porra, eu estou vendo a lombada cacete. Acha que sou cego,
quer dirigir eu paro o carro e você vem no meu lugar- Depois do meu desabafo
ela ficava quietinha com lágrimas nos olhos e, isto cortava o meu coração. No
entanto, todo esse arrependimento durava pouco, exatamente até próxima lombada,
o solavanco do carro e a batida do assoalho no chão.
-Porra agora que era pra você me avisar, você não me avisa,
tá vendo como você é.
E o passeio do feriado prolongado já não tinha mais diálogos,
até o pôr do sol atrás das montanhas era bem triste. Na hora de dormir ela
virava-se para direção da parede e, quando eu tentava abraça-la, ela
desvencilhava minhas mãos que tentava prende-la em meu corpo, eu apenas ouvia o
seu soluço e suas lágrimas quentes que escorriam pelos meus braços noutra
tentativa frustrada de um abraço apertado. Então, no meio da noite
desorientado, eu levantava da cama e ia dormir no meu carro. Talvez eu não soubesse
o quanto uma lombada pudesse arruinar meu casamento e, dentro do carro ouvindo
a Legião Urbana, eu imaginava mil desculpas pra dizer para ela.
Lá fora meus
olhos testemunhavam algumas estrelas cadentes sumirem do céu e, mesmo que todas
estrelas sumissem a lua cheia era enorme, centenas de vaga-lumes e grilos que
cricrilavam do lado de fora do carro.
Será meu Deus que ela me perdoaria dessa vez? Na esperança
eu adormecia com a cabeça entre o meus braços cruzados no volante, sonhando com
corações brilhantes feitos pelos vaga-lumes, com estrelas rabiscando o céu sem
se apagarem e corais de grilos cricrilando animados uma música da Legião Urbana.
Como muito sacrifício compramos um novo carro, mais moderno,
mais potente e mais bonito. Logo no primeiro passeio com o carro sentimos que estava
faltando algo, foi quando minha esposa teve a ideia de comprar o cd “Dois” da Legião
Urbana e, era exatamente isto que estava faltando.
O carro tinha uma arrancada fenomenal, o painel era um
espetáculo porém, as lombadas continuavam com solavancos piores. Eu já não ouvia
mais seus soluços e nem sentia suas lágrimas, dormíamos e quartos separados. As
estrelas também sumiram do céu, os grilos já não cricrilavam como antes e os vaga-lumes
apagaram de vez o seu brilho.
E, numa manhã fria no
final de do outono minha esposa resolveu ir embora, levando consigo a minha rotina
e, uma nova rotina foi surgindo, trancafiado dentro do carro ouvindo Legião
Urbana dia e noite, até que dia chegou que um homem bem vestindo, um comprador
que levou meu sonho embora.
Os bens foram
divididos como manda lei e, com minha parte tão logo comprei dezenas de panelas para fazerem das tampas volantes de carros imaginários. E, no escuro
do meu quarto eu me divertia, desviando dos gatos, dos cachorros, diminuindo a
velocidade quando enxergava as lombadas. Nas noites chuvosas eu parava num
ponto imaginário e esperava por alguns minutos meu Pai que saia da escuridão e
adentrava no carro imaginário, sorrindo desenfreadamente.
Mas, um dia quebraram
com violência a porta do meu quarto e a luz do dia cegou meus olhos... Vieram alguns homens truculentos chutando todas
as panelas e me agarrando com uma força brutal e, me trouxeram nessa clínica na
qual eu me encontro, com medicamentos controlados pelo o horário.
Ontem aqui na clínica foi um dia diferente, veio uma turma
com violões, maquiados e com perucas. Cantando músicas religiosas, foi quando
eu levantei as mãos e o cara do violão todo simpático me atendeu.
_ Olha só cara barbudo lá do fundo quer pedir uma música.
E todos olhares entorpecidos por medicamentos tarjas pretas
ganharam a minha direção, até mocinha maquiada de palhaça, com um pandeiro nas
mãos e olhos verdes olhou atentamente para mim. Então, eu disse ainda meio
zonzo pelo efeito do último medicamento:
_ “Acrilic on canvas” da Legião Urbana.
E logo na introdução olhei pela janela lá fora na escuridão
centenas de vaga-lumes apagando e acendendo suas luzes, vi a lua e estrelas
cadentes rabiscando o céu, e eu me lembrei dela, desvestido dos rancores eu
sorri em sua direção e, ela retribuiu.
É saudade, então
E mais uma vez
De você fiz o desenho mais perfeito que se fez
Os traços copiei do que não aconteceu
As cores que escolhi entre as tintas que inventei
Misturei com a promessa que nós dois nunca fizemos
De um dia sermos três Trabalhei você em luz e sombra...
E mais uma vez
De você fiz o desenho mais perfeito que se fez
Os traços copiei do que não aconteceu
As cores que escolhi entre as tintas que inventei
Misturei com a promessa que nós dois nunca fizemos
De um dia sermos três Trabalhei você em luz e sombra...
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