No consultório médico.
_Doutor já faz algumas semanas que não consigo dormir ou
durmo pouco. No trabalho tenho vertigens e, quase fui ao chão hoje.
O doutor tamborilando os dedos na mesa do consultório e,
olhando fixamente para um notebook com adesivos do Clube Regatas Flamengo e da
banda The Strokes... Eu imaginei um jovem carioca recém formado, no currículo
alguns Rock in Rios e Lollapaloozas, chapado de uísque e Red Bull, algumas
tretas no Maracanã com o torcida Vascaína. Quanto maior era delonga do silencio
do doutor, mais os meus pensamentos permissivos viajavam dentro daquele ambiente refrigerado
por ar condicionado... Por fraqueza de espirito ou levado pela contagiante
euforia universitária, ainda soma-se no currículo do Doutor alguns bailes funk e aventuras
nas proximidades das favelas a procura de cocaína...
_Alguma ruptura importante nesses últimos dias?
Questionou o doutor sem tirar os olhos do notebook.
_Ruptura? Como assim?
O doutor continuou:
_Falecimento de alguma pessoa que você tinha ligação direta?
_Não.
_Alguma situação financeira negativa?
_Não.
E tirando os olhos pela primeira vez do notebook.
_Divorcio, término de namoro ou algo parecido?
_Também não.
Só então pude perceber que seus olhos eram azuis, não um azul apagado, tinha a profundidade do céu em dias de verão. Foi demorado e
sem nenhum piscar de olhos. Eu pisquei, corri com meus olhos na parede de cor
bege até um enorme quadro de girassóis, uma réplica pobre de Van Gogh. Próximo,
uma janela que dava pra rua... Pela janela você enxergava o que acontecia lá
fora, só que de uma forma muda, o som era vedado pelas paredes beges e, todo
movimento, todas as cores e todas coisas soavam melancólica, testemunhei ainda
pela janela uma moça sorrindo e o seu sorriso pareceu me melancólico como todas
as coisas, todas as cores e todo movimento.
Voltei com meus olhos para doutor e, seus olhos azuis ainda
tinha a minha direção e, novamente eu fugi do seu olhar para uma mesa de centro
de vidro. Havia sobre ela três pequenos vasos com violetas floridas de cores
diferentes...
_Roberval – disse o médico do nada, interrompendo
bruscamente minhas observações e, continuou:
_ Não vejo alegria em seus olhos, não vejo brilho, não vejo
nada... Seu olhar também não transmite nada, nem emoção, nem dor, nem alegria.
Opaco, inativo e desinteressante. Falta emoção, falta vida e o mais importante
falta serotonina.
_Doutor, eu só não consigo dormir.
_Então, me diz qual foi a última vez que você sorriu de verdade?
Sorriu de perder o folego? Qual foi a última vez que você sentiu feliz, de
felicidade, de ficar pulando em frente do espelho, de gritar, de andar pelado
pela casa inteira, de passear com o cachorro?
E, fixando novamente aqueles olhos na minha direção. Agora,
já não tinha aquela profundidade dos dias de verão, era azul sombrio,
perturbador, tenebroso, infestados de minúsculas veias vermelhas como se possível
fosse, um relâmpago vermelho oriundo de um azul sombrio que descarregasse todo
suas frustrações na minha direção, e sua voz ainda ficou repetindo em minha
cabeça como trovão retumbante:
_ Seu olhar também não transmite nada, nem emoção, nem dor,
nem alegria. Opaco, inativo e desinteressante. Falta emoção, falta vida e o
mais importante falta serotonina. Seu olhar também não transmite nada, nem
emoção, nem dor, ...
De repente do lado de fora da janela a moça já não sorria
mais, chorava, tudo ficou cinza e as pessoas imóveis. Todo mundo, o mundo
inteiro precisava da serotonina para dormir, para acordar, para sorrir, para
andar pelado pela casa inteira, para gritar e pular diante do espelho.
Observei os girassóis murchos, aquele amarelo opaco e sem
vida no quadro de Van Gogh, aquelas paredes beges que não transmitia nada, nem
dor e nem alegria, aquele olhos azuis temerosos e desinteressantes, aquela
janela que mostrava um mundo surdo, aquelas violetas sobre mesa de centro
florida porém, sem alegria.
_Doutor, você é feliz?
Ele pensou antes de responder, olhou as paredes beges, o
girassóis no quadro, a janela e as violetas. Seus olhos azuis ficaram tão
tristes que, um prenuncio de tempestades era visível, as pequenas veias
vermelhas pareciam sangrar. Suspirou fundo e soltou num jato de ar: Praia do Farol, Praia do Forte, Copacabana,
Flamengo, Fluminense, Anitta e Zeca Pagodinho expeliram de uma só vez.
_Estamos falando de conseguir dormir. Certo Roberval? E as
perguntas aqui é eu que faço. Entendido?
Questionou o doutor ainda com lágrimas nos olhos e olhando
para janela um mundo surdo.
_Certo doutor!!!
_Pra ser sincero, eu vou ser franco com você Roberval. Já
tive insônia também que, nenhum clonazepam fazia efeito, técnicas de hipnose
também não adiantava, dormir era uma tortura. O que fiz???
Indagou o doutor prestando atenção nos girassóis do quadro,
era realmente de um amarelo opaco. E, pela sua delonga estudando minuciosamente
o quadro o silencio prolongou-se. Perguntei:
_O que você fez, Doutor?
_Hã? Ah tá! Comecei ouvir o álbum da banda que mais gostava
antes de dormir.
_Que banda?
_The Strokes.
_Deu certo?
_Desde do início, sem clonazepam, sem Van Gogh e sem nada... E
qual sua banda?
_Tô ouvindo o primeiro do La Carne, Doutor?
_La... O quê???
_La Carne.
_Nunca ouvi falar. Essa banda existe ou será que é coisa da
sua imaginação? Tipo bandas imaginarias, é normal isso, eu tive várias bandas
imaginárias no decorrer da minha vida.
_Doutor é real, banda de Osasco que terá reconhecimento
algum dia. A arte tem disso, as vezes tarda, demora mais um dia chega... Foi
assim com Van Gogh... ele nem ficou sabendo da grandiosidade do seu nome e, foi
assim com dezenas, centenas...
_Então, vou receitar La Carne pra você antes de dormir. Daqui a quinze dias
você volta, se não tiver fazendo nenhum efeito clonazepam. Certo?
Sai do consultório e aquele mundo surdo já não existia mais.
Buzinas de carros, apito do guarda de transito, choro de criança querendo
pipoca, sirene da ambulância em alta velocidade, briga de dependentes químicos
no meio da praça, prostitutas acenando na esquina, vendedores ambulantes
oferecendo seus produtos... Tudo em transe.
Cheguei em casa já era começo de noite, pernilongos zunindo
em meus ouvidos, uma barata atravessou a cozinha indo na direção da sala, na
geladeira um vinho bordô e a lembrança de quem partiu. Lógico que isto eu
ocultei do doutor, não queria parecer frágil, sensível ou coisa assim mas, as fotografias
dela ainda estão nas paredes da sala e, sobressai diante dos meus olhos o
quadro de girassóis de Van Gogh. No quarto a cama de casal ainda está com dois
travesseiros, o lençol é florido, existe dependurada na porta do guarda roupa
uma calcinha vermelha, artigo de luxo que eu furtei antes dela partir.
Bem, deitei e apertei o play e antes que musica começasse a
tocar assassinei dois pernilongos num único tapa.
Tipo a primeira nada de sono:
Olha lá os asteca tocando / soprando aquela
porra de bambu / me cago em la madre! estos ticos deben ser hijos del sol
Acho que não tá funcionando, deveria colocar sei lá Coldplay,
a segunda música me faz andar na escuridão:
Como vai, demônio triste?/quer saber onde vai
parar?/
Eu já sei, não tem sentido/qualquer coisa … tão longe.../
Cotovelo no balcão/uma pá de bituca no chão/
Eu continuo sem saber se rezo ou saio sem pagar/
Bêbado na estação/uma pá de bituca no chão/eu continuo sem saber
Eu já sei, não tem sentido/qualquer coisa … tão longe.../
Cotovelo no balcão/uma pá de bituca no chão/
Eu continuo sem saber se rezo ou saio sem pagar/
Bêbado na estação/uma pá de bituca no chão/eu continuo sem saber
Quanto mais eu ouvia mais andava pelo quarto. Lá fora há
milhares de estrelas brilhando no céu, um vento frio que entra pela gelosia me
faz esfregar as mãos, a vontade de beber era insaciável. Sai do quarto fui na
direção do vinho bordô.
Vem cá cheirar minha boca / hoje eu não passei
no bar / tava jogando pedra na janela de deus.
Acabei com o bordô, despedi das estrelas, atirei a calcinha
vermelha no chão e nada de dormir.
Mas antes do couro comer / eu comprei duas
ficha e enfiei no buraco da jukebox /
Escolhi dois som que eu gostava / e dois som só pra lembrar do tempo em que dava risada de tudo
Escolhi dois som que eu gostava / e dois som só pra lembrar do tempo em que dava risada de tudo
Passaram apenas três dias e, lá estava eu novamente no
consultório. Estranhei logo ao adentrar, as janelas estavam abertas, as paredes
pintadas na cor Flamboyant, a réplica do quadro de Van Gogh foi retirado e, no
seu lugar uma réplica do quadro Abaporu de Tarsila do Amaral, tinha um som
ambiente e, advinha o que estava tocando? Isto mesmo La Carne:
Tô sem grana e não tenho nada pra fazer / não
tenho nada a perder / só uma gimba pra acender, e eu disse:
Hey Iguana, Letís go!
Hey Iguana, Letís go!
O doutor convidou-me para sentar, reparei que tinha enormes
olheiras que, de certa forma salientava mais a cor de seus olhos, com os
cotovelos sobre a mesa esfregava impacientemente e repetidamente as mãos pelo
rosto, bocejou demoradamente depois, suspirou profundo.
_ O que aconteceu? Questionou-me após outro bocejo
_Doutor fiz o que pediu, apertei o play no álbum do La
Carne, só que o efeito foi ao contrário. Antes dormia pouco ou não dormia e,
hoje eu não tenho opção de dormir pouco.
_Nossa Roberval que álbum é esse??? Que banda é essa???
Procurei esse álbum na internet logo que você foi embora aquele dia e, decidi
trocar com o do The Strokes na esperança de sonhos melhores... Putz – Nesse
momento o jovem doutor esfregou novamente as mãos pelo rosto e continuou:
_ Esse
álbum é viciante eu não consigo para de ouvir, é um clássico do Rock nacional,
daqueles que algum dia será grandioso, é um hino suburbano de São Paulo, um
arranhão feito com unhas cortantes... Veja bem, eu sou carioca.
Então eu disse:
_Doutor mais o que faço pra eu dormir?
Ele me respondeu rapidamente:
_Clonazepam.
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