sábado, 17 de junho de 2017

La Carne - La Carne


No consultório médico.

_Doutor já faz algumas semanas que não consigo dormir ou durmo pouco. No trabalho tenho vertigens e, quase fui ao chão hoje.

O doutor tamborilando os dedos na mesa do consultório e, olhando fixamente para um notebook com adesivos do Clube Regatas Flamengo e da banda The Strokes... Eu imaginei um jovem carioca recém formado, no currículo alguns Rock in Rios e Lollapaloozas, chapado de uísque e Red Bull, algumas tretas no Maracanã com o torcida Vascaína. Quanto maior era delonga do silencio do doutor, mais os meus pensamentos permissivos viajavam dentro daquele ambiente refrigerado por ar condicionado... Por fraqueza de espirito ou levado pela contagiante euforia universitária, ainda soma-se no currículo do Doutor alguns bailes funk e aventuras nas proximidades das favelas a procura de cocaína...
  
_Alguma ruptura importante nesses últimos dias?
Questionou o doutor sem tirar os olhos do notebook.
_Ruptura? Como assim?
O doutor continuou:
_Falecimento de alguma pessoa que você tinha ligação direta?
_Não.
_Alguma situação financeira negativa?
_Não.
E tirando os olhos pela primeira vez do notebook.
_Divorcio, término de namoro ou algo parecido?
_Também não.

Só então pude perceber que seus olhos eram azuis, não um azul apagado, tinha a profundidade do céu em dias de verão. Foi demorado e sem nenhum piscar de olhos. Eu pisquei, corri com meus olhos na parede de cor bege até um enorme quadro de girassóis, uma réplica pobre de Van Gogh. Próximo, uma janela que dava pra rua... Pela janela você enxergava o que acontecia lá fora, só que de uma forma muda, o som era vedado pelas paredes beges e, todo movimento, todas as cores e todas coisas soavam melancólica, testemunhei ainda pela janela uma moça sorrindo e o seu sorriso pareceu me melancólico como todas as coisas, todas as cores e todo movimento.


Voltei com meus olhos para doutor e, seus olhos azuis ainda tinha a minha direção e, novamente eu fugi do seu olhar para uma mesa de centro de vidro. Havia sobre ela três pequenos vasos com violetas floridas de cores diferentes...

_Roberval – disse o médico do nada, interrompendo bruscamente minhas observações e, continuou:

_ Não vejo alegria em seus olhos, não vejo brilho, não vejo nada... Seu olhar também não transmite nada, nem emoção, nem dor, nem alegria. Opaco, inativo e desinteressante. Falta emoção, falta vida e o mais importante falta serotonina.

_Doutor, eu só não consigo dormir.

_Então, me diz qual foi a última vez que você sorriu de verdade? Sorriu de perder o folego? Qual foi a última vez que você sentiu feliz, de felicidade, de ficar pulando em frente do espelho, de gritar, de andar pelado pela casa inteira, de passear com o cachorro?

E, fixando novamente aqueles olhos na minha direção. Agora, já não tinha aquela profundidade dos dias de verão, era azul sombrio, perturbador, tenebroso, infestados de minúsculas veias vermelhas como se possível fosse, um relâmpago vermelho oriundo de um azul sombrio que descarregasse todo suas frustrações na minha direção, e sua voz ainda ficou repetindo em minha cabeça como trovão retumbante:

_ Seu olhar também não transmite nada, nem emoção, nem dor, nem alegria. Opaco, inativo e desinteressante. Falta emoção, falta vida e o mais importante falta serotonina. Seu olhar também não transmite nada, nem emoção, nem dor, ...

De repente do lado de fora da janela a moça já não sorria mais, chorava, tudo ficou cinza e as pessoas imóveis. Todo mundo, o mundo inteiro precisava da serotonina para dormir, para acordar, para sorrir, para andar pelado pela casa inteira, para gritar e pular diante do espelho.

Observei os girassóis murchos, aquele amarelo opaco e sem vida no quadro de Van Gogh, aquelas paredes beges que não transmitia nada, nem dor e nem alegria, aquele olhos azuis temerosos e desinteressantes, aquela janela que mostrava um mundo surdo, aquelas violetas sobre mesa de centro florida porém, sem alegria.

_Doutor, você é feliz?

Ele pensou antes de responder, olhou as paredes beges, o girassóis no quadro, a janela e as violetas. Seus olhos azuis ficaram tão tristes que, um prenuncio de tempestades era visível, as pequenas veias vermelhas pareciam sangrar. Suspirou fundo e soltou num jato de ar:  Praia do Farol, Praia do Forte, Copacabana, Flamengo, Fluminense, Anitta e Zeca Pagodinho expeliram de uma só vez.

_Estamos falando de conseguir dormir. Certo Roberval? E as perguntas aqui é eu que faço. Entendido?

Questionou o doutor ainda com lágrimas nos olhos e olhando para janela um mundo surdo.

_Certo doutor!!!

_Pra ser sincero, eu vou ser franco com você Roberval. Já tive insônia também que, nenhum clonazepam fazia efeito, técnicas de hipnose também não adiantava, dormir era uma tortura. O que fiz???

Indagou o doutor prestando atenção nos girassóis do quadro, era realmente de um amarelo opaco. E, pela sua delonga estudando minuciosamente o quadro o silencio prolongou-se. Perguntei:

_O que você fez, Doutor?

_Hã? Ah tá! Comecei ouvir o álbum da banda que mais gostava antes de dormir.
_Que banda?
_The Strokes.
_Deu certo?
_Desde do início, sem clonazepam, sem Van Gogh e sem nada... E qual sua banda?
_Tô ouvindo o primeiro do La Carne, Doutor?
_La... O quê???
_La Carne.
_Nunca ouvi falar. Essa banda existe ou será que é coisa da sua imaginação? Tipo bandas imaginarias, é normal isso, eu tive várias bandas imaginárias no decorrer da minha vida.


_Doutor é real, banda de Osasco que terá reconhecimento algum dia. A arte tem disso, as vezes tarda, demora mais um dia chega... Foi assim com Van Gogh... ele nem ficou sabendo da grandiosidade do seu nome e, foi assim com dezenas, centenas...

_Então, vou receitar La Carne pra você antes de dormir. Daqui a quinze dias você volta, se não tiver fazendo nenhum efeito clonazepam. Certo?

Sai do consultório e aquele mundo surdo já não existia mais. Buzinas de carros, apito do guarda de transito, choro de criança querendo pipoca, sirene da ambulância em alta velocidade, briga de dependentes químicos no meio da praça, prostitutas acenando na esquina, vendedores ambulantes oferecendo seus produtos... Tudo em transe.

Cheguei em casa já era começo de noite, pernilongos zunindo em meus ouvidos, uma barata atravessou a cozinha indo na direção da sala, na geladeira um vinho bordô e a lembrança de quem partiu. Lógico que isto eu ocultei do doutor, não queria parecer frágil, sensível ou coisa assim mas, as fotografias dela ainda estão nas paredes da sala e, sobressai diante dos meus olhos o quadro de girassóis de Van Gogh. No quarto a cama de casal ainda está com dois travesseiros, o lençol é florido, existe dependurada na porta do guarda roupa uma calcinha vermelha, artigo de luxo que eu furtei antes dela partir.

Bem, deitei e apertei o play e antes que musica começasse a tocar assassinei dois pernilongos num único tapa.



Tipo a primeira nada de sono:

Olha lá os asteca tocando / soprando aquela porra de bambu / me cago em la madre! estos ticos deben ser hijos del sol

Acho que não tá funcionando, deveria colocar sei lá Coldplay, a segunda música me faz andar na escuridão:

Como vai, demônio triste?/quer saber onde vai parar?/
Eu já sei, não tem sentido/qualquer coisa … tão longe.../
Cotovelo no balcão/uma pá de bituca no chão/
Eu continuo sem saber se rezo ou saio sem pagar/
Bêbado na estação/uma pá de bituca no chão/eu continuo sem saber

Quanto mais eu ouvia mais andava pelo quarto. Lá fora há milhares de estrelas brilhando no céu, um vento frio que entra pela gelosia me faz esfregar as mãos, a vontade de beber era insaciável. Sai do quarto fui na direção do vinho bordô.

Vem cá cheirar minha boca / hoje eu não passei no bar / tava jogando pedra na janela de deus.
Acabei com o bordô, despedi das estrelas, atirei a calcinha vermelha no chão e nada de dormir.
Mas antes do couro comer / eu comprei duas ficha e enfiei no buraco da jukebox /

Escolhi dois som que eu gostava / e dois som só pra lembrar do tempo em que dava risada de tudo


Passaram apenas três dias e, lá estava eu novamente no consultório. Estranhei logo ao adentrar, as janelas estavam abertas, as paredes pintadas na cor Flamboyant, a réplica do quadro de Van Gogh foi retirado e, no seu lugar uma réplica do quadro Abaporu de Tarsila do Amaral, tinha um som ambiente e, advinha o que estava tocando? Isto mesmo La Carne:



Tô sem grana e não tenho nada pra fazer / não tenho nada a perder / só uma gimba pra acender, e eu disse:

Hey Iguana, Letís go!

O doutor convidou-me para sentar, reparei que tinha enormes olheiras que, de certa forma salientava mais a cor de seus olhos, com os cotovelos sobre a mesa esfregava impacientemente e repetidamente as mãos pelo rosto, bocejou demoradamente depois, suspirou profundo.

_ O que aconteceu? Questionou-me após outro bocejo

_Doutor fiz o que pediu, apertei o play no álbum do La Carne, só que o efeito foi ao contrário. Antes dormia pouco ou não dormia e, hoje eu não tenho opção de dormir pouco.


_Nossa Roberval que álbum é esse??? Que banda é essa??? Procurei esse álbum na internet logo que você foi embora aquele dia e, decidi trocar com o do The Strokes na esperança de sonhos melhores... Putz – Nesse momento o jovem doutor esfregou novamente as mãos pelo rosto e continuou:
_ Esse álbum é viciante eu não consigo para de ouvir, é um clássico do Rock nacional, daqueles que algum dia será grandioso, é um hino suburbano de São Paulo, um arranhão feito com unhas cortantes... Veja bem, eu sou carioca.


Então eu disse:

_Doutor mais o que faço pra eu dormir?

Ele me respondeu rapidamente:


_Clonazepam.


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